sábado, 29 de setembro de 2012

Carta santa aberta à humanidade


Filhos e filhas,

Que o Pai esteja convosco.

A situação em que me encontro chegou a um ponto em que não posso mais me omitir. Sinto-me obrigado a falar diretamente convosco, filhos e filhas, e o meio que penso ser mais eficiente é me manifestar por escrito, dirigindo-me a todos indiscriminadamente. Escrevo para milhões de interlocutores, faz-se necessário. E confesso estar constrangido. Oprimido, acuado.

De antemão, revelo que preferiria não ter que fazer isso. Afirmo ter total ciência de que nossa cordial relação pode ser afetada, arranhada, mas não tenho escolhas. É isso ou ver as coisas piorarem. A decisão foi dolorosamente bem pensada.

Acontece que as recentes variações tão bruscas de temperatura são efeitos de massas de ar, de densidades diferentes, associadas a mudanças nos níveis de umidade, que resultam na instabilidade do clima. E tem muito mais coisa envolvida nesse esquenta e esfria que nem eu entendo, não sou meteorologista. Eu mesmo vivo gripado.

Acreditem, meus pequenos, eu tenho senso de humor. Vivo às gargalhadas, faço graça de tudo. 

Mas já não dá mais, está insuportável. Tenho sofrido, andado cabisbaixo. Aonde eu vou, ouço enxurradas de piadinhas maldosas sobre mim. É um bullying infinito. Tudo sou eu, tudo eu. Eu faço chover só de sacanagem para avacalhar o fim de semana da galera, eu não sei mexer no controle do ar condicionado, eu devo viver dançando a Dança da Manivela e cantando “aqui tá quente, tá frio, muito quente, tá frio”. Outro dia me chamaram de bipolar. Cadê o respeito? Não tenho nada a ver com isso. Sério, nada! Minha função aqui em cima é outra. E nem existe essa tal máquina de controlar o tempo.

Portanto, filhos, peço-vos de coração para pegarem mais leve comigo. Já tenho idade avançada e não me faz bem ficar triste assim. O verão vem aí e as coisas vão voltar ao normal. Combinado?

Agradeço a atenção. Que o bom Deus vos abençoe.


Pedro

terça-feira, 18 de setembro de 2012

As you are


A vida é preenchida por momentos de glória e decepção. O ser humano precisa aprender a conviver com o sucesso e o fracasso. A linha divisória entre o êxito e a falha é das mais tênues e tende para um dos lados de acordo com o resultado das provas que o universo oferece todo o tempo. Foi mais ou menos o que aconteceu comigo há dez longos anos e creio só agora estar disposto a tocar no assunto abertamente.

Eu havia me mudado de cidade, mais uma vez, há pouco. Vivia a situação desagradável de ser o novato em todas as redes de relacionamento e não saber exatamente como andava minha aceitação. Na nova escola, já tinha vivido algumas situações que não me favoreciam. Até que recebi um convite inesperado: uma festinha na casa de cara gente boa da outra sala, então namorado de uma menina que estudava comigo. O surpreendente é que aquela turma era das mais fechadas e diziam que andavam apenas entre eles. Pareciam ter gostado de mim.

Lá fui eu. Um apartamento bacana, com cobertura, música alta, umas bebidas. Perfeito para uma galerinha do ensino médio!  A madrugada chegando e eu aproveitava para estreitar meus fracos laços de amizade e conhecer o pessoal com quem eu ainda não tinha conversado direito.

Seguindo o cerimonial à risca, chegou a hora da rodinha de violão. Todo mundo sentado no chão, perninhas cruzadas e uns pop rocks cantados em conjunto. Convencionou-se então que cada um tocaria uma música e cederia o violão ao colega ao lado, que mandaria mais uma. E a cada fim de canção do Jota Quest, Pearl Jam ou Legião Urbana, o ritual se repetia, outro assumia o posto de líder da roda e eu me questionava se só eu no mundo não sabia dedilhar as cordas do instrumento. Ele se aproximava de mim e eu, em silêncio, pensava a melhor atitude a ser tomada para não sair muito por baixo.

Até que o violão chegou ao meu lado. A música terminou e ele me foi entregue. Eu, fingindo certa naturalidade, o repassei ao próximo. Só que o tal próximo não aceitou, alegando ser a minha vez de chefiar a turma puxando um hit musical. Não havia mais escolhas: abri o jogo, revelei que não sabia tocar. Eles insistiam, reafirmavam que poderia ser qualquer canção. Eu, cabisbaixo, ratificava: não dava mesmo. Aí eu recebi uma indagação que mais soou como uma pá de cal, a machadada final:

– Pô, cara, mas nem Come as you are?

– Não, galera. Nem Come as you are.

Um instante de silêncio, as pessoas se entreolharam. O amigo do lado tomou o violão e tocou qualquer coisa. Depois ainda apareceram com uma guitarra e uma caixa de som e um deles gastou na introdução de Sweet Child o’ Mine, acho que só pra me humilhar. Eu permaneci desolado e a noite perdeu metade da graça que tinha. E até hoje fico meio mal quando ouço Nirvana. Confiro se ninguém vem com um violão na minha direção.

É, Kurt, onde quer que você esteja, fique sabendo que o seu riff me causou uma situação bastante desfavorável. Eu que tenho uma cabeça boa, dei a volta por cima e não pensei em bobagens, tipo um suicídio. Opa, comentário nada pessoal, viu?