terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Centenário


Não, amigo leitor. Este texto não tem nada a ver com futebol. É apenas e tão somente para celebrar o centésimo post do Issoqueeufalei. Um projeto que nasceu despretensioso, se transformou algumas vezes e agora chega à marca de cem publicações.

Para quem não sabe, no início era apenas um trabalho de faculdade – criar e alimentar um blog, de qualquer forma. Acabei tomando gosto pela coisa e fui um dos únicos da turma a levar a ideia adiante e mantê-la viva até hoje. Com o tempo, troquei de domínio e o Issoqueeufalei deixou o blig e suas imperfeições para aportar no blogspot (onde acaba de completar uma centena de postagens). O legal disso tudo foi ter sempre minha meia dúzia de fiéis leitores acompanhando, elogiando, criticando e o principal, se divertindo.

Como já devem ter notado, elaborei um novo layout (após horas de luta com o Photoshop e o designer de modelos), que confere algo que eu sempre quis: mais legibilidade. Fonte e linhas maiores e o texto preto num fundo claro. Bem melhor para ler, não?

Comecei a fazer uma retrospectiva do que melhor aconteceu por aqui nos últimos 99 posts, mas não consegui selecionar meus favoritos. Parei em algo em torno de 20 e desisti. Fica a dica: se quiser passar o tempo de forma agradável, vasculhe o arquivo, do lado direito, e relembre boas histórias já publicadas. Se precisar de uma indicação, só dizer.

Por fim, quero agradecer a todos que passaram pelo blog nestes quase três anos, em especial à moçada que o acompanha desde os velhos tempos do blig e às pessoas que sempre se manifestam. Foi e é bom escrever para vocês. Deixe seu nome nos comentários para que eu separe uma taça de champanhe e brinde com a minha nesta comemoração especial. E valeu.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A decisão

O futebol é regido por deuses. Sim, eles existem num universo paralelo, não é mera força de expressão. E são eles que tomam todas as decisões importantes que envolvem o esporte. Quando um time pequeno vence um galático, é obra deles. Quando um juiz não vê um claro gol de mão, é certeza de que o dedo de um deles está por trás. Nas viradas inimagináveis de placar é que eles mais se divertem.

São senhores, de barba e cabelos brancos. Usam sandália e longas túnicas claras e reúnem-se periodicamente para decidir os rumos do esporte numa sala luxuosa com uma grande mesa redonda de madeira. Hoje foi dia de reunião, talvez a mais triste delas. O tempo estava nublado e frio e no jardim não havia sequer um pássaro a cantar. Todos sabiam que era dia de tomar uma grande decisão.

De tempos em tempos, os deuses do futebol iluminam uma alma no mundo real. E o dono dela tem a missão de levar alegria ao povo e conduzir esquadrões rumo a incontáveis conquistas. Hoje foi dia de decidir se o último grande mito do esporte em atividade continuaria ou não a desfilar sua genialidade nos gramados terrenos.

Todos os senhores sentaram-se à mesa na hora marcada, mas nenhum teve coragem de tomar a palavra. Um foi flagrado discretamente derramando uma lágrima. O mais experiente chamou para si a responsabilidade e deu início à solenidade, disse que todos sabiam por que estavam ali e precisavam tomar logo a decisão.

A troca de ideias começou. E após alguns minutos concluíram que ele deveria sim pendurar as chuteiras – e ostentá-las para sempre no lugar mais alto do pódio. O corpo, humano, não foi capaz de acompanhar a alma de ser superior. O mais novo dos deuses então se levantou e, sob impactante silêncio, descerrou o pano que guardava a imagem do agora aposentado mito em um quadro na parede, entre as imagens de Puskas e Garrincha. Ladeado por fotos de Pelé e Cruyff, de Maradona, Falcão e Di Stefano. Zico, Romário e Zidane.

Para tentar melhorar o clima, um deles falou de Cristiano Ronaldo e Messi, mas foi logo repreendido. Outro citou a próxima leva, capitaneada por Neymar e Ganso e ninguém lhe deu ouvidos. Aos poucos, um a um, eles deixaram a sala, cada um por uma porta, cabisbaixos. Pensavam que surgiriam outras arrancadas, dribles e gols. Mas não um sorriso como aquele. Lá fora, começou a chover.

Nos corredores, todos os deuses tiveram a mesma atitude: olhar para trás para ter certeza de que ninguém os seguira. Então tiraram a túnica. Por baixo, uma camisa número nove.





domingo, 13 de fevereiro de 2011

Perseguição


O gosto dela por homens mais velhos veio desde a adolescência. As ideias de maturidade, de estabilidade profissional e segurança a fascinavam. O primeiro amor platônico foi um primo. Depois, um amigo da tia. O instrutor da academia foi o próximo. E nesta lista não poderia faltar um professor universitário.

Já há alguns dias ela notara que estava perdidamente apaixonada pelo mestre. Contava os dias para a aula e, quando ela chegava, sentava-se na primeira cadeira com o cabelo arrumado e expondo um sorrisinho bobo. Escrevia os nomes dos dois envoltos por milhares corações nas folhas de material de estudo.

Esses amores jamais saiam do plano das ideias. Mas com o professor foi diferente. Ela realmente acreditava que poderiam viver um romance. Ou pelo menos uma aventura. Só havia um problema: como abrir o jogo com ele? Durante a aula seria impossível. Enviar um e-mail com a apresentação das boas intenções e a proposta de um encontro parecia muito frio. Esperar encontrá-lo numa festa soava pouquíssimo eficiente. A saída decidida foi uma conversa franca, longe da faculdade. Para isso ela só precisaria descobrir onde ele morava.

O plano estava armado. Saiu da aula de sexta-feira mais cedo e foi direto pro carro, já estacionado ao lado de uma árvore. Estava prestes a arrancar assim que o professor aparecesse e entrasse no veículo dele. A outra parte do plano estava chegando: o melhor amigo dela, tranquilo, deixava a faculdade, com mochila nas costas e um assobio na boca. Ela, de grandes óculos escuros, abaixou um pouco os vidros e o convocou: “Ei! Psiu. Pssssiu”. Ele procurou de onde vinha o chamamento, olhou para o carro sem entender e ela fez sinal para que ele corresse e lá entrasse – o professor já estava a caminho. Pedido atendido. Ela precisaria de companhia que a ajudasse a perceber se estava ou não sendo notada pelo amado.

O professor entrou no carrão, com vidros pretos. Com muita gente ainda saindo, não foi possível concluir se ele estava ou não sozinho, embora os dois amigos no carro tenham tido a impressão de ver a porta do carona se fechando. Ele deu partida, eles seguiram. Sem ter a menor ideia de para onde iriam.

O percurso começou rumo à avenida principal da cidade. Muitos carros, tráfego intenso, nada que levantasse qualquer suspeita. Após minutos, o carro dele deu seta para a esquerda e entrou em um bairro desconhecido. O veículo de trás fez o mesmo. O trânsito diminuiu consideravelmente. Um sinal, duas rotatórias e algumas placas de “Pare” depois, só restavam os dois carros na via. O dele, com vidros pretos que o blindavam de qualquer vazamento de informação do que pudesse estar acontecendo em seu interior. O dela, com vidros transparentes que deixavam à mostra dois estudantes com quem ele convivia duas vezes por semana. E que nem imaginavam em que lugar da cidade estavam.

Outra curva à direita e o carro da frente parou. O de trás também. Do da frente saiu, do lado do carona, uma mulher, de vestido, com longos cabelos anelados loiros e fichário na mão. A garota do carro de trás ficou sem reação. E agora, o que fazer? Como agir? Será que eles estão juntos ou foi só uma gentileza? Era preciso pensar rápido. Virou-se para o amigo: “Desce”. “O quê?” “Desce, cara. Finge que mora nessa casa aí.” “Mas eu nem sei onde estamos.” “Desce que depois eu te busco, vai.”

Ele obedeceu. Ela acelerou, passou pelo carro do professor e ainda buzinou e deu tchauzinho. O colega caminhou até o portão, abriu a mochila e ficou procurando as chaves de casa até o carro que restou também ir. Depois, se sentou num murinho, acendeu um cigarro, ligou o mp3 e esperou o retorno da comparsa. Amigo é para essas coisas.

Tática frustrada. Mas na segunda-feira ela já estava apaixonada por um advogado que tinha escritório no prédio onde ela fazia estágio. E tinha um plano infalível para conquistá-lo.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Fora o baile


Foi quando a banda terminou o show que a ficha caiu. De uma vez. Finalizou com uma dessas músicas animadas, típicas de fim de baile, que depois ninguém vai se lembrar exatamente qual foi. Agradeceram, desligaram o som, os garçons pararam de servir cerveja e o pessoal da limpeza entrou em cena recolhendo copos quebrados e paletós esquecidos.

O fim do baile de formatura significou para ele mais que o término de uma comemoração. Ele não tinha se preparado para este momento como achava que tinha. Até então estava tudo nos conformes – aula da saudade, missa, colação de grau, valsa, família orgulhosa e reunida. Só que o fim da música e a repentina claridade das lâmpadas recém-acesas foram golpes duros demais. Sozinho, saindo do banheiro, parou por um instante e fitou o salão, já começando a se esvaziar, de ponta a ponta. Alguns bêbados tentavam a todo custo conseguir mais bebida. Outros, levar uma recordação qualquer, de um arranjo de flores a um sofazinho branco. Estava mesmo acabando.

Inevitavelmente ele se questionou se estaria preparado para ser adulto, formado, à procura de uma oportunidade profissional. Uma lágrima rolou-lhe vagarosamente pela face, carregando a lembrança da aprovação no vestibular. O dedo indicador da mão esquerda (a que não segurava a garrafa de uísque) deu logo um fim a ela. Mas outra lágrima recordou-lhe o primeiro dia de aula. E não demorou a chegar as que lhe trouxeram imagens cruelmente nítidas da calourada, dos amigos carecas, do primeiro amor da faculdade, da república, da volta das férias e da lenta preparação para a formatura. Pronto, estava com o rosto ensopado de choro e de saudades antecipadas.

Enquanto tentava se secar e parar de soluçar, sentiu dois braços docemente familiares o envolvendo até se cruzarem em seu peito. A certeza de receber um abraço da namorada àquela hora o fez ainda pior. A formatura naturalmente os separaria e toda a história de amor construída por eles estava em risco. Desistiu de tentar parar de chorar.

Foi aí que decidiu fazer alguma coisa para mudar a situação. Respirou fundo, ainda às lágrimas, e tomou uma decisão: não iria mais se formar. Na verdade, a colação já tinha acontecido e o diploma já estava guardado em casa para ser exibido, mas ele faria o que estava ao seu alcance: não sairia daquele baile nunca mais.

A namorada, claro, achou a ideia ridícula. Gentilmente o avisou de que seus familiares o aguardavam sonolentos na mesa para irem embora e uns dois ou três primos já estavam à sua procura para levarem-no à força, antes que só sobrassem eles e os faxineiros no salão. A informação entrou por um ouvido e saiu por outro. Ela se aproveitou da embriaguez do amado para abraçá-lo com carinho e tentar ludibriá-lo num misto de conversa e chamego a caminho da saída. Mas já no segundo passo ele percebeu as sórdidas intenções e voltou correndo para onde estava. Sentou-se.

No fundo, já tinha certeza de que ainda não estava preparado para enfrentar o mundo lá fora. Não queria conhecer o desemprego tão jovem, nem sair da república e voltar para a casa dos pais. Muito menos não ver mais os amigos todo dia.

Após alguns minutos de tentativas solitárias, a moça foi pedir ajuda. E agora ela, pai, mãe, a irmã e o cunhado, o amigo de infância, dois primos e uma prima, aquele tio meio bobo e até a avó estavam ao lado dele tentando explicar que aquilo tudo era natural. Acabara-se a vida universitária, como acaba para todos. Ele ainda viveria muitas coisas boas, se daria bem profissionalmente, seria o orgulho da família. Além disso, todos os outros formandos já tinham ido embora há um tempo e o pessoal da organização estava impaciente para fechar o espaço. Ele, com o rosto já inchado de chorar, não quis nem saber. Mas, para felicidade de todos, deu o último gole na garrafa de uísque e apagou em cima da mesa. Foi carregado por um segurança fortão até o carro.

Na tarde do dia seguinte acordou com uma ressaca jamais experimentada. Lutou contra o próprio corpo para se levantar. Quando finalmente conseguiu abrir os olhos, procurou em seu campo de visão a banda, os garçons, os amigos com chifrinhos de plástico na cabeça se pegando perto do palco. Percebeu que estava de sapatos, calça social e sem camisa. Ficou de pé, se olhou no espelho, tirou os sapatos e correu até a porta de casa. Correu. Com o corpo ainda quente. Correu. Com a cabeça mais que dolorida. Correu. Com o amargo gosto do uísque na boca. Correu e chegou até o salão onde fora realizado o baile. Estava completamente vazio, sem uma única lembrança da madrugada inesquecível que há pouco sediara.

Então ele se sentou no meio-fio e chorou outra vez.


Dedicado à recém-formada Lívia Lana. Que já aceitou ter que bater de frente com este mundão.