terça-feira, 19 de agosto de 2014

Releitura


Não tinha mais ideia de que horas eram quando abriu a porta de casa, cansado. Talvez fosse o meio da madrugada. Ou o fim. Ainda sentia o gosto do uísque na boca. Outra vez, passara a noite na boemia, acompanhado de toda a sorte de pessoas que a madrugada apresenta. Deixou os sapatos próximos ao sofá e terminou de desabotoar a camisa. Serviu-se de mais uma última dose honesta.

Ele merecia aquela noite, o dia na empresa tinha sido mortal. E tudo tem o seu momento.

O velho violão de cordas surradas repousava no sofá. Esboçou uma sequência qualquer de dois ou três acordes antes de uma pausa para um gole generoso do uísque. Dedilhou uma introdução de uma canção que tentava compor há tempos, já meio abandonada.

Mas, dessa vez, o ritmo soou melhor. Bem mais sincero. Testou outra vez e a pegada levemente mais agressiva definitivamente o agradou. A roupagem atual da melodia trouxe outra essência e ele arriscou um novo riff. Tudo se desenvolvia numa naturalidade quase programada.

À medida em que o som se encaixava, ele sussurrava a letra. Que, agora, não estava mais à altura da melodia. Ele a escrevera baseado em um antigo affair com uma colega de trabalho. De início, era uma encomenda dela, que nunca ficou pronta. A última versão falava da aproximação deles, o ápice da relação até o envolvimento dela com um outro cara e o afastamento definitivo dos dois. Decididamente, não seria essa a história a ser contada.

Com mais um gole decidido, secou o uísque do copo. E da terceira frase em diante, a história foi radicalmente substituída por uma sequência muito mais interessante, que nunca aconteceu. O romance ganhou ares mais tórridos e proibidos na nova letra e, nela, nunca mais teve fim. Ele acabava de compor a provável mais brilhante obra de toda a sua carreira de músico amador. Tocou e cantou sua canção completa mais duas vezes. Sorriu para si mesmo, orgulhoso.

Adormeceu no sofá, abraçado às velhas cordas.

No dia seguinte, acordaria com uma dor de cabeça cruel. E jamais se lembraria dos seus lampejos de genialidade e inspiração de algumas horas atrás. Condenado a viver eternamente em um escritório, nunca seria um artista de verdade.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

(Não) Aconteceu


Aconteceu que, naquela noite, ele sonhou com ela.

Era um amor antigo, dos que marcam o fim da adolescência e o início da vida adulta. Foi bom, foi puro, foi jovem. Mas acabou. Depois voltou, acabou, voltou. E um dia acabou de vez, há talvez seis ou sete anos. Ou mais, não importa.

Eles nunca mais se viram, muito menos se falaram. Cada um seguiu seu destino, sem qualquer dor. Faziam parte da vida do outro em comentários cada vez menos frequentes, que deixaram definitivamente de existir sem ninguém perceber. Sobraram poucas lembranças, só as mais positivas, escondidas em alguma gaveta secundária da memória.

Até que, naquela noite, ele sonhou com ela.

Eles se reencontraram e em tempo recorde já esculpiam, juntos, os mesmos sorrisos de quando se conheceram por amigos em comum. Gargalharam simultaneamente outra vez, por qualquer coisa. O olhar de cada um voltou a exibir aquela cor brilhante depois de anos. O jeitinho diferente de falar soava perfeitamente familiar.

O sabor do beijo continuava o mesmo. Exata e inesquecivelmente o mesmo.

No sonho, não falaram sobre o que viveram desde o último encontro. O hiato fora suprimido por um destino agora irrelevante. Só disseram que sempre souberam que um dia estariam juntos novamente. E mais umas tantas besteiras meio sem sentido. E aí ele acordou.

Acordou com a estranha sensação de tudo ter valido a pena e uma pontinha de desejo de que o seu universo imaginário se materializasse no real. Sentou-se na cama, de onde via a estante da sala que um dia ostentou um porta-retratos de um tórrido beijo deles. Mais intrigante era pensar que ele acabara de viver um momento especial que não aconteceu, com alguém que jamais saberia do que tinha acabara de fazer parte.

Acontece que, naquela noite, ela sonhou com ele.