terça-feira, 29 de junho de 2010

Histórias que a bola não contou – Parte II

12 de julho de 1998: A Seleção Brasileira pisa no gramado do Stade de France para enfrentar os donos da casa, ser campeã e esquecer de vez o fantasma de 1994. Terminar a copa com quatro títulos mundiais e se igualar à Itália é questão de honra. Os canarinhos tentam aparentar confiança, apesar do estádio todo azul e dos problemas da noite anterior. Circulava nos bastidores a informação de que o craque Ronaldo não jogaria, reflexo do mal estar culminado em convulsões na madrugada. A torcida verde-amarela temia que o time não produzisse sem o garoto Fenômeno. Ninguém confirmava ou desmentia, até que o nome de Edmundo apareceu na relação dos atletas que entrariam em campo.

O jogo começa e o Brasil tem como dupla de ataque Edmundo e Bebeto. O Animal ainda vive a boa fase que deu ao Vasco o título brasileiro do ano anterior. O comportamento irracional, no entanto, mantém-se. A câmera mostra Ronaldo no banco, meio amarelo, olhos meio fechados, um pouco suado, com um blusão de frio. Até a cabeça parecia maior. Dificilmente entraria em campo.

Aos seis minutos de bola rolando, o astro francês Zinedine Zidane parte com a bola dominada no meio-campo e quem aparece para recuperá-la é Edmundo. Com um toque genial, o camisa 10 azul aplica um preciso chapéu sobre o atacante brasileiro. Edmundo não deixa por menos e crava uma de suas chuteiras na coluna de Zizou. Ele cai, geme de dor, é imediatamente levado de maca. O árbitro apresenta seu cartão amarelo a Edmundo e diz que na próxima dividida ele está fora. O francês passa por uma minicirurgia caseira à beira do gramado e volta a campo ainda no primeiro tempo. A torcida o aplaude de pé.

O técnico Zagallo procura um substituto para o Animal no banco antes que ele seja expulso. A única opção é Ronaldo, baqueado. O craque entra, sob vaias do Stade de France. Já tinha quatro gols na copa e estava a dois do croata Davor Suker. Edmundo deixa o campo nervoso, chuta a placa eletrônica que indicou a substituição, chuta o quarto árbitro, chuta o banco de reservas, chuta o Zagallo. Ronaldo tenta três arrancadas e é malsucedido em todas, mal consegue se mover.

A partida é monótona até que os deuses do futebol resolvem que ela deve entrar para a história. Nos primeiros instantes do segundo tempo, um escanteio para o Brasil. Rivaldo coloca a bola na área, na cabeça de Ronaldo, que abre o placar. Quase não consegue comemorar. A torcida azul grita ainda mais, confia no primeiro título francês. Zidane está apagado. Próximo lance, outro escanteio. Rivaldo, bola, cabeça, Ronaldo, gol. Inacreditáveis dois a zero. Artilharia da competição.

Em um dos poucos ataques franceses, o goleiro Taffarel se choca com Zidane, que vai ao chão, nocauteado. Silêncio e apreensão entre os le bleus. A França perde forças para tentar a virada. Com o jogo definido, os dois times tocam a bola e esperam o apito final. A torcida francesa rende-se à genialidade do time Canarinho e, cordialmente, enaltece os atletas brasileiros. Nos acréscimos, em um contra-ataque mortal, César Sampaio recebe de Bebeto e dá números finais à partida: 3 x 0.

Dunga, enfim, levanta a taça de campeão do mundo. Zidane aplaude a cena e diz ter perdoado Edmundo – coisas do jogo. Bebeto apaga o trauma de 94. Ronaldo é eleito pela revista francesa World Footballer o maior jogador da era pós-Pelé e ganha uma estátua de bronze na entrada do Stade de France. Esculpiram ele até esbelto, bem disposto, de braços abertos como o Cristo, com o dedinho levantado e tudo.


domingo, 27 de junho de 2010

Histórias que a bola não contou - Parte I

17 julho de 1994: Os olhos do mundo voltam-se para uma penalidade. Nos Estados Unidos, Brasil e Itália decidem quem será o primeiro tetracampeão mundial de futebol. Pelo lado canarinho, Romário, Branco e Dunga já marcaram e Márcio Santos desperdiçou. Na Esquadra Azurra, apenas Albertini e Evani converteram. Baresi e Massaro perderam as oportunidades. O próximo a cobrar é o italiano Roberto Baggio. Se ele errar, o Brasil é tetra. Baggio se concentra, caminha e bate. Taffarel cai para a direita e ele acerta o ângulo esquerdo. Golaço.

O jogo segue. O próximo é o Bebeto. Ele está nervoso, a quarta estrela depende do seu chute. Faz cara de choro, treme. Suando frio, não toma distância e bate forte, mas o goleirão Pagliuca voa até o canto e segura a bola rente ao corpo. Bebeto chora. Os italianos comemoram, ainda estão vivos na partida. Empatados em 3 x 3, Brasil e Itália partem para as cobranças eliminatórias alternadas. Em melhor momento psicológico, os europeus recomeçam a série. O meio-campo Donadoni pega a bola, ainda rindo, e converte fácil o quarto tento da Azurra. O Brasil precisa marcar para continuar na disputa. A responsabilidade é do irreverente Viola, reserva da equipe. O atacante dá tchau para a torcida azul, olha a bola, faz uma dancinha marota antes de chutar e bate pra fora. Bem pra fora.


Os italianos comemoram, invadem o campo, dão cambalhotas. A televisão mostra ao mundo o narrador italiano gritando e comemorando o tetra abraçado com o ex-jogador Paolo Rossi. Os brasileiros consolam Viola, já às lágrimas. Zagallo questiona o juiz se não havia mais cobranças – perdera a conta. A culpa da derrota cai sobre o técnico Carlos Alberto Parreira e o futebol implantado por ele, pragmático, sem um camisa 10, sem espetáculo, de fracasso previsível. No aeroporto, no retorno ao país, uma multidão recebe o time canarinho com insultos e uma faixa enorme, escrito em letras garrafais: time de pipoqueiros. Baggio é eleito o melhor jogador da copa e o melhor jogador do mundo nos próximos dois anos. Deixa a Juventus e é vendido ao Real Madrid por 112 milhões de dólares, a maior transferência do futebol mundial até hoje.

Bebeto vira sinônimo de medroso. Parreira, de burro. Viola foi, por uns tempos, inimigo público número 1 do povo brasileiro e até hoje é motivo de piadas no mundo inteiro. Depois de ficar famoso mundialmente, chega a jogar uma temporada num time pequeno italiano, mas não faz sucesso. Converteu-se ao budismo e diz ter encontrado a paz interior. Vez por outra dá entrevistas a TVs italianas e diz nunca ter entendido o que aconteceu com ele naquele fatídico 17 de julho. O dia que todos os brasileiros querem esquecer.


quinta-feira, 10 de junho de 2010

Entrevista com o Ninja Brasileiro

Exclusivo!

O maior heroi nacional, o Ninja Brasileiro, falou pela primeira vez com uma equipe de reportagem e concedeu entrevista exclusiva em sua árvore.

E o mais surpreendente, concordou em aparecer sem os óculos escuros. O heroi conversou sobre sua história e sua busca incessante por justiça sociais.

N

sábado, 5 de junho de 2010

Sócrates e Sócrates


Depois de alguns séculos, a porta da Sala das Almas Elevadas foi aberta. Pelo próprio Chefe, o Poderoso. Nesse ambiente ficam os espíritos dos seres mais iluminados, enquanto aguardam para descer (como eles chamam encarnar, nascer, viver na Terra). O ano era 469 negativo (como eles chamam o período antes de Cristo). O Comandante andou um pouco, cumprimentou três ou quatro almas e avistou quem ele queria, os dois estavam preguiçosamente sentados no canto da sala, ao lado de uma pequena mesa redonda, beliscando uns petiscos, tomando cerveja e discutindo política.

O Chefe gritou de longe:

- Ô Sócrates!

Os dois olharam ao mesmo tempo. Ele riu, adorava brincadeirinhas assim. Lá estavam Sócrates e Sócrates. Um mais alto, magro, com a barba negra e o outro mais baixinho, um pouco calvo, barba bem maior. O Poderoso explicou que fora pessoalmente à sala iluminada porque ainda não se decidira por qual deles enviar ao mundo humano em breve. Foi trocar ideias com eles.

Os dois se mostraram surpresos, pediram mais informações. O Mestre explicou: “Vocês dois se destacarão na Terra. Só que um vai agora, o outro só daqui uns 2400 anos”. Eles se entreolharam, em princípio não tinham pressa para descer. Queriam saber como seria a vida de cada um.

“Quem for primeiro, nasce na Grécia. O outro, no Brasil. O primeiro será filósofo e fonte de estudo por muitos milênios nos campos da ética, do parto de idéias e da democracia. Sua nobreza será reconhecida até em seu ato de morte. O segundo será atleta e médico, ídolo do povo, também famoso por discussões sobre democracia” – detalhou o Poderoso.

A briga parecia boa. Como as duas vidas aparentavam ser sensacionais, os dois Sócrates cobiçavam a primeira vaga, até para ver logo como era o tal mundo dos vivos. O Chefe acrescentou que quem fosse primeiro seria eternamente conhecido como um gênio do conhecimento. Já o último teria o calcanhar abençoado. O Criador finalizou: “Quem for agora, terá a honra de conviver com Platão e Aristóteles. O segundo marcará época ao lado de Casagrande e Zico”.

Foi aí que o Sócrates magrelo da barba preta levantou a mão e disse: “Eu vou depois”. O Poderoso olhou para o outro Sócrates, que consentiu, com sinal de positivo. O Chefe fez anotações na prancheta, se despediu e foi saindo.

O que iria nascer dali a pouco já estava ansioso pra conhecer o tal Platão. O que só iria depois dava uma risadinha marota de canto de boca. Sabia que o Corinthians só seria fundado em 1910.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Novos tempos


Há anos quero conhecer Ibitipoca. Pra qum não sabe, lá há um parque florestal, com cachoeiras, grutas e montanhas. Fica a pouco mais de uma hora de Juiz de Fora e é reduto de muita gente da região em feriados e época de férias. O parque fica ao lado da vila do Arraial de Conceição de Ibitipoca, famosa por eventos, como Réveillon, carnaval e festival de jazz, no frio do meio do ano. A vila pertence ao município de Lima Duarte, a uns 20 quilômetros.

A última vez que quase conheci o lugar foi no Réveillon passado. Articulei, convoquei minha turma da faculdade, parentes, amigos de infância. Mas não deu certo e não foi dessa vez. Achei que tão cedo não iria ver de perto a casa dos malucos, hippies e roqueiros da Zona da Mata mineira.

É, mas o mundo dá voltas. No início da noite de sexta-feira recebi um telefonema. Do Banco do Brasil de Lima Duarte, me convocando para trabalhar na cidade. Em poucos dias vou, sem data pra voltar.

Caratinga, Inhapim, Resende Costa, Itaguaí, Ouro Preto, Manhuaçu, Juiz de Fora. Viçosa. São Mateus. Lima Duarte. E tá só começando.

Imagem meramente ilustrativa

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Clandestino


Viagem de volta para casa. O ônibus até que era confortável, daqueles que a poltrona quase deita e tem apoio para as pernas. Se nada desse errado, estaria em casa em mais ou menos 11 horas. Na poltrona 35, eu já estava pronto para partir: blusa de frio, pacote de salgadinhos, fone à mão, livro aberto. Após alguns estranhos minutos de demora para partir, entendi o porquê: um clandestino – que viajava encolhido atrás da 46, escondido entre o último banco e a parede do ônibus, em frente ao banheiro – fora descoberto.

O cara que o encontrou viajaria com a esposa e os dois filhos nas últimas quatro poltronas do lado do condutor do coletivo. Coincidentemente era policial. Chamou o motorista, que ao ver o rapaz agachado, exclamou o que deixou todos os passageiros ainda mais confusos: “Ah, não! Você aqui de novo?!”

O clandestino se levantou. Disse ser menor de idade, embora fosse a maior pessoa do ônibus. Magrelão. Os traços pareciam mesmo de uns 16 ou 17 anos. Revelou que vinha de Goiânia e sua intenção era ir até o Rio de Janeiro. Disse ser da favela do Jacarezinho. A PM foi acionada e ele ficou por lá. O ônibus partiu. Dizem que até uma equipe de TV apareceu por lá para entrevistar o rapaz.

Eu me perguntava se, caso seus planos tivessem sucesso, ele aguentaria o frio da noite com aquele shortinho. E, dada a indignação do motorista, qual era a frequência das viagens interestaduais daquele jovem.

Qual seria a hora certa de entrar no ônibus sorrateiramente? E de sair? Teria uma técnica para pular para uma poltrona vazia sem ser percebido? Talvez deitado, pelo compartimento superior de malas. E se a vontade de ir ao banheiro batesse de uma vez, com ele agachado lá atrás, como faria? Refiro-me ao número dois.

Quantos estados ele conhecia? Será que viajava gratuitamente e, ao chegar ao destino, participava de eventos com entradas despercebidas por seguranças e organizadores? Tipo: segunda, cinema. Entra por cima, na salinha do projetor. Terça: teatro, pela janela do camarim. Quarta: futebol, fantasiado de mascote cabeçudo. Quinta, show sertanejo. Esse é fácil, só entrar de chapéu, segurando um violão e se dizer o roadie da banda. Sexta, cervejinha em boteco chique. Camisa branca, gravata borboleta e atender dois ou três pedidos de clientes, fazendo-se de garçom. O sábado sempre varia, de feira de filhotes a calourada do DCE. De vale-tudo a show do Franz Ferdinand. De automobilismo a casas de striptease. Domingo, dia de entrar em outro ônibus e conhecer outros lugares, outras culturas, outras pessoas.

Será que já conheceu a Europa, viajando clandestinamente de avião? Ou de navio. De iate? Falava outras línguas, pelo menos inglês? Amazônia, Pantanal? Será que já entrou sem credencial em uma coletiva do Dunga? Tudo deve ter começado quando, aos 11 anos, foi à primeira festa de 15 anos como penetra. Nunca mais parou.

A tranquilidade do clandestino enquanto se levantava do esconderijo, logo ao ser desmascarado, me marcou. Que segurança, que certeza do que fazia. Olho pela última vez para a 46 e tento me concentrar no livro em minhas mãos, a cidade ficou pra trás. A viagem vai ser longa.