domingo, 29 de abril de 2012

A4


Ela estava a postos há algumas semanas, mas ninguém tinha precisado dela ainda. Ela não desanimava, acreditava que seria útil em breve. Fazia planos para um trabalho bem feito e não decepcionar. A vida no interior da impressora não era fácil, mas aquela folha A4, a última da bandeja, tentava ver as coisas de uma forma positiva.

O problema é que a história sempre se repetia: ela esperava pacientemente a vez de subir, conhecer o toner e ganhar o mundo, grafada de letras ou quem sabe uma bela imagem, mas a gaveta era carregada com mais papel e a folha solitária continuava no fundo.  A impressora era a única da repartição, muito usada, e a gerência havia disseminado a cultura da solidariedade corporativa, que instruía os empregados a não esperar que outro tome pequenas atitudes que poderiam melhorar o trabalho de todos – como encher a impressora de folhas.

No começo, a folha aproveitava para trocar ideias com as novas companheiras de bandeja e fazer amizades. Mas, com o tempo, tornou-se amarga. Via outros papéis acabarem de ser colocados na gaveta e, instantes depois, ganharem o mundo.  Não conseguia mais aceitar a injustiça da situação. Calou-se.

Até que surgiu a oportunidade de ser impressa. A folha ficou radiante, quase não se continha, parecia criança à espera da festa de aniversário. Faltavam apenas quatro papéis. Três. Dois. Ela era a próxima! Minutos de expectativa... e a bandeja foi aberta, carregada com uma resma de 500 A4 e ela continuou no fundo. Os sonhos de receber um jato de tinta com versos de Camões ou a conclusão de um trabalho científico deram lugar ao ódio no coração. Ao sentimento de vingança.

Passaram-se mais semanas até a folha ter outra oportunidade de deixar a gaveta. E da próxima vez deu certo. Mas ela não queria mais. Pôs em prática a vingança arquitetada durante dias e noites. Quando foi puxada, entrou na impressora e empacou, antes de receber a tinta. Travou o equipamento, que ficou parado por toda a tarde. A repartição não pôde imprimir mais nada e a rotina de trabalho foi completamente modificada. Chamaram os técnicos, que só apareceram dois dias depois. Dias de caos. E a impressora nunca mais parou de dar problema. Mesmo dilacerada, aquela folha ria em silêncio. Vingara-se dos inúteis que não tinham dado a ela o valor que merecia.



Dizem que assim surgiram impressões chulas que terminam com “a quatro”.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Atrás de um caminhão


No princípio da noite de sexta-feira, Maurício Júnior preparava-se para a balada, que prometia. O abadá estava separado, sobre a cama. A expectativa era das melhores. Mauricinho havia intensificado os treinos na academia nas últimas semanas e passado a tarde daquele dia exercitando bíceps e ombros. 

O rapaz tirou a barba com um Mach 3 Turbo para não ter erro e perfumou-se com uma fragrância importada. Montou um moicano com gel. Vestiu a bermuda e calçou os tênis novos. O celular tocou, eram os amigos informando que já estavam na porta. Pegou as chaves do carro e uma garrafa de Absolut – o camarote teria bebidas liberadas, mas o caminho até lá seria regado a vodca e energéticos. Partiu confiante para a micareta e, assim, perdeu as contas de com quantas garotas ficou.

Roberto Júnior nem esperava ir à tal festa. Ele não dava a mínima para shows de axé, não era a onda dele. Acontece que justo no dia recebeu de volta uma grana que tinha emprestado para um amigo há um tempo e não contava que veria outra vez tão cedo. Decidiu torrá-la e a balada do trio elétrico era aonde todo mundo iria no dia. Comprou um ingresso de pista mesmo, o mais barato.

Betinho nunca entrou em uma academia. Não estava exatamente no peso ideal. Em casa, tomou banho rápido e foi. Não fez a barba e passou um desodorante desses de supermercado. Encheu a cara de cerveja e foi de ônibus, cantando umas músicas que não conhecia direito e batucando nas paredes com uma galera que nunca havia visto. Partiu confiante para a micareta e, assim, perdeu as contas de com quantas garotas ficou.



Maurício e Roberto não se conhecem. Mas talvez naquela noite tenham interagido um com o outro, indiretamente, muito mais do que imaginam.