quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Chamas de Sonhos


Era fim de tarde e a ansiedade tomava conta de todos eles. Estava quase na hora do tão aguardado primeiro torneio de MMA do pedaço. A nova mania esportiva ganhou o país e chegou até eles. Faltava apenas a porta do depósito ser fechada, para eles terem certeza de que ninguém mais apareceria por ali. Pouco antes das 18 horas – no horário previsto – as chaves giraram na fechadura e os personagens saíram de cartazes, caixas de bonecos e enfeites de bolo para dar início à competição.

Todos os dias quando os humanos fecham as lojas de produtos para festas infantis, super-heróis e desenhos animados à venda sob as mais diversas formas saem de suas embalagens para conversar. Falam de sua força, a história de vida de cada um e imaginam como será a criança dona da festa que eles decorarão. São amigos, planejam brincadeiras e atividades para passar o tempo. E, numa dessas, o pessoal da Liga da Justiça teve a ideia de organizar o torneio de luta entre eles. A única regra: para não ser injusto com ninguém, estava proibido o uso de poderes.

A semana foi de divulgação do evento, inscrições e montagem da tabela. Os bonecos tiraram muitos objetos de madeira das caixas e montaram um ringue, com tatame de espuma. Chegara a hora do primeiro combate. Sem surpresas, o Shrek confirmou o favoritismo e bateu fácil no Tigrão, para orgulho da Fiona e tristeza do Pooh, que quase chorou, coitado. Em seguida, a primeira luta da categoria elite: Ryu contra Thor. A briga foi boa, a galera quase não piscou. A Moranguinho e a Barbie morriam de dó a cada golpe mais forte. Um Power Ranger dessas versões mais modernas era o mais exaltado, gritava o tempo todo e um bonequinho do Chaves ficou tão tenso que sofreu um piripaque. Sem poder soltar um hadouken, o japonês dos videogames ficou sem saber como atacar o oponente e acabou perdendo por pontos. O juiz Harry Potter ergueu o braço do loirinho do martelo, como campeão da rodada.

O próximo combate era o mais esperado da noite: Wolverine contra Batman. Os dois entraram no ringue de madeira mal-encarados. O Morcegão começou melhor, dominando a luta. Mas o mutante tinha mais raiva. Quando o locutor Cebolinha deu início ao terceiro lound, o herói de Gothan City arremessou um bumerangue contra o Wolverine. Pelo entendimento dele, arma não era poder e poderia ser usada. O x-man, assustado, alçou suas garras e rachou a arminha de plástico em duas. Em seguida, atacou o Morcego, acusando-o de antijogo. O Lanterna Verde não gostou de como seu amigo de Liga foi questionado e levitou o Wolverine, com a força de seu anel. O Ciclope, que nem é tão chegado assim do cara das garras, tomou as dores em nome do Instituto Xavier e lançou um raio nas costas do Lanterna. Pronto, estava armada a bagunça.

Todo mundo invadiu o campo de lutas para protestar. O Homem-Aranha ainda tentou separar a moçada, fazendo umas barreiras de teia, mas não teve jeito. O Aladin e o Pernalonga saíram na porrada, o Simba discutiu com a Fera, a Dona Florinda bateu no Pato Donald e o Ben 10 toda hora virava um alienígena diferente pra brigar com alguém. O Magneto levantou um carrinho do Hot Wheels e lançou contra o Peter Pan, o Pica-pau bicou o nariz do Pateta e o Coringa ria como um bobo e jogava cartas em uma tartaruga ninja. Lá no canto, a briga era entra palhacinhos e dinossauros. O Flash gritou algo que o Tocha Humana, do Quarteto Fantástico, não gostou e o rapaz do fogo mirou uma rajada incendiária nele. O Flash se esquivou, claro, mas as labaredas atingiram objetos de madeira. O fogo pegou na hora, se alastrou e começou a queimar tudo que encontrou. O Aquaman tentou apagar as chamas, mas sem sucesso.

Em minutos o fogo tomou conta do depósito e partiu rumo a outros andares do prédio e a edifícios vizinhos. A fumaça preta e o clarão incandescente invadiram o bairro. Os personagens tentaram se salvar, mas nenhum deles sobreviveu. As chamas atingiram uma loja de pneus ao lado e a situação ficou ainda pior. O fogo ardeu por alguns dias, causando muitos estragos, prejuízos e, principalmente, tristeza.



Não foi assim que começou o incêndio em uma loja de festas de Juiz de Fora essa semana. É só uma homenagem aos verdadeiros heróis da sociedade, os bombeiros, e um desejo de força aos trabalhadores que perderam tudo.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

À primeira íris


A cena dos olhos dele cruzando com os dela pela primeira vez foi inesquecível. Ele nunca tinha reparado tanto em um par de olhos. O brilho que as duas esferas azuis emitiu pareceu iluminar todo o ambiente e transpor qualquer barreira física, até atingir o interior dele. Eles não se falaram, muito menos se tocaram, mas a força daquele olhar fez com que ela entrasse de vez em seus pensamentos e sentimentos e por lá ficasse.

Os olhos azuis pareciam ter sido esculpidos com a mais rara das pedras preciosas, algo como uma utópica liga de topázios e turquesas. A cor única harmonizava de forma perfeita com o tom claro da pele dela. Tornava os olhos maiores e o olhar muito mais intenso. Lembrava, simultaneamente, o frio polar e o calor escaldante dos dias de sol sem nuvens.

Até que eles se vissem outra vez, a luz do olhar dela não saiu da mente dele.

Ele não imaginava, mas, ao vê-lo, os olhos dele ficaram registrados nas memórias dela. O olhar cheio ofuscou todo o entorno dos dois naquele rápido instante em que se cruzaram. O verde bucólico da íris dele transmitiu a ela de imediato uma estranha e confortante sensação de segurança. Sem saber explicar por que, ela sentiu-se na primavera.

Ela pensava nos detalhes dos olhos dele, como flores em um campo. Pequenos raios luminosos em uma imensidão verde-oliva que brilhavam até ela. O olhar dele era como o portal de acesso a algo maior e valioso.

Até que eles se vissem outra vez, a luz do olhar dele não saiu da mente dela.

Eles se encontraram novamente, numa situação propícia. Os dois meio atrapalhados, inseguros. Conheceram-se, falaram qualquer coisa, riram. Em questão de tempo, se renderam a um beijo. O toque dos lábios levou as luzes brilhantes dos olhares, outrora tão contempladas por eles, a se apagaram. E, no escuro total, eles foram, juntos, para outra dimensão.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Empatia precoce


Os dois sempre moraram na mesma rua e tinham a mesma idade. Eram da mesma série na escola. Tinham os mesmos amigos, conheciam as mesmas pessoas e frequentavam o mesmo campinho e a sala de catecismo. Tinham tudo para serem os melhores amigos do mundo. Mas não eram nem perto disso.

Desde crianças, não se suportavam. As mães se acostumaram a ser chamadas na escola para conversar com a diretora porque, vira e mexe, os dois meninos saiam na mão, por qualquer motivo. Um comentário mal interpretado de um lado já levava a uma resposta atravessada do outro e aí era questão de tempo para eles se engalfinharem no chão. Do colégio ou da rua.

Brigaram na sala de aula, no corredor e infinitas vezes no pátio. Trocaram socos na cantina, na porta da escola e uma vez no banheiro. Jogando bolinhas de gude. Num passeio da classe a um museu. Durante uma prova de matemática.

Nas olimpíadas do colégio, cansaram de ser expulsos de campo ou de quadra por brigas entre si. Se eram de times adversários, já se estranhavam na primeira dividida. Se da mesma equipe, questão de tempo até um se irritar com um lance do outro e a confusão começar. Mas nunca souberam explicar de onde vinha tamanha empatia pelo vizinho.

A coisa se agravou quando se tornaram adolescentes. Para terminar de vez com qualquer possibilidade de entendimento, apaixonaram-se pela mesma garota. E parece que ela também gostou deles, porque namorou os dois. Duas vezes com cada.

Como os amigos eram os mesmos, estavam, a contragosto, sempre juntos. As primeiras festas de 15 anos, os primeiros porres e as primeiras viagens para fora da cidade foram as mesmas dos dois. Com o tempo, aprenderam a se suportar, embora não escondessem de ninguém que não iam com a cara um do outro.

Veio a faculdade. Eles escolheram o mesmo curso e ganharam mais alguns anos de convívio. Nas aulas de discussões, nunca tinham a mesma opinião e, não raro, a esfera acadêmica era deixada de lado e dava lugar à pessoal. Os novos colegas se divertiam com a situação. Na formatura estiveram todos os amigos em comum. Metade convidada por cada um.

Escolheram o mesmo ramo de atividade e hoje trabalham em empresas concorrentes. Para eles, uma motivação a mais para buscar a liderança de mercado. Ainda se esbarram com frequência em coquetéis empresariais e reuniões da turma da faculdade, do colégio ou da rua. Numa dessas, discutiram de novo e resolveram, depois de tantos anos, tirar a limpo as diferenças. Como homens, na mão, sob os olhares de muitas testemunhas. Cada um pegou um controle e ligaram o PlayStation, no Pro Evolution. Um escolheu o Barça e outro o Real. Estaria naqueles dois tempos de dez minutos a grande chance da consagração e superação do eterno maior rival da vida.