segunda-feira, 12 de junho de 2017

Conta


No caminho, feito a passos lentos e conversa boa, uma fábrica cinza e feia destoava da paisagem e uma fumaça escura escapava e sujava um pedaço do céu sem nuvens. Pausa.

- Eu já te contei que aqui era uma escola? Minha primeira escola. Tinha um pátio grande, com azulejos vermelhos, e daquele lado, lá no fundo, ficava um parquinho, velho. Aprendi muita coisa nesse lugar, viu? Ah, que tempo! Fui muito feliz aqui dentro. Muitos anos. Meus primeiros amigos todos são dessa época. 

- É?

- Eu já te contei que eu tinha uma colega, vou te confessar, que era a coisa mais linda? Meu coração quase pulava pela boca quando ela chegava perto, eu tremia todo por dentro. Que menina linda, diferente de todas! 

- Umm.

- Já te falei do sorrisão dela? Do tamanho do mundo. E um jeitinho de falar, tão doce. Quando ela chegava perto de mim, aquele cabelão com as pontinhas claras amarrado num rabo-de-cavalo, parecia que o tempo parava. Falava muito, sobre tudo, parecia que já conhecia o mundo.

- Sei como é.

- Te contei que foi com ela meu primeiro beijo? Foi, depois de um ensaio de quadrilha. Perto daquele portão marrom tinha um chafariz, foi atrás dele. Que dia, meu amigo! Eu me lembro até hoje do barulhinho da água, que nem cachoeira, do nosso lado.

- Massa.

- Já te falei que ela foi minha namorada? A primeira. Eu tinha certeza que seria a única. Jurava. Tem muito tempo, mas foi uma época legal, a gente se dava super bem. De andar à toa, de mãos dadas na volta pra casa sem pressa, as festinhas, na biblioteca. Minha amigona mesmo. Ela viajava de férias pra praia e trazia umas conchinhas pra mim, essas coisas. Eu me lembro até de um banquinho branco, meio descascado, onde a gente se sentava pra conversar quando a gente brigava. A carinha dela de brava. Mas era coisa de dois minutos e tava tudo bem de novo, você tinha que ver!

- É.

- Eu já te falei o tanto que eu gostei dessa menina? Era muito! Doido isso, né? A gente era tão novo. E tanto tempo depois eu tô aqui falando disso, em frente a uma fábrica. A vida passou, depois cada um seguiu seu rumo, perdemos contato. Nunca mais tive notícias. Eu conheci muita gente, me casei, fiz família, fui feliz. Mas tá aí: já te contei que foi com aquela mulher que eu descobri o que é gostar de alguém de verdade?

- Já contou sim, vô. Aliás, conta sempre que a gente passa por aqui.

Um suspiro longo, um sorriso simpático entre bochechas rosas cheias de marcas e dois olhos que olhavam uma coisa, mas viam outra. Fixos em outro tempo.

- É, eu sei. Gosto dessa história.

domingo, 15 de maio de 2016

10, 20, 30 anos


Fim de tarde quente, uma mesa de bar de um calçadão qualquer. Três cadeiras e à frente delas um suco de laranja, uma garrafa de Brahma gelada e uma dose de Jack Daniel’s. Três caras ansiosos pelo papo: uma criança de cabelos lisos, um jovem magrelo com cavanhaque à la Salsicha, do Scooby Doo, e um adulto barbudo se viam frente a frente pela primeira vez naquele dia que era, ao mesmo tempo, 15 de maio de 1996, de 2006 e 2016.

O mais velho fitava os outros dois com sorriso saudoso, tinha se tornado expert em guardar lembranças. Os olhos do mais novo eram curiosidade pura, queria saber mil coisas, não sabia nem por onde começar. O outro era o mais confiante, deu o primeiro gole e começou a falar. Tinham 10, 20 e 30 anos.

Apresentaram-se, como se precisasse. O garoto tinha saído do estado natal há um ano. Mal sabia que voltaria em breve, sairia mais pra frente e voltaria outra vez pra deixar sua terra em definitivo mais tarde. O de 20 anos gozava essa fase da vida com tudo que tinha direito. O de barba vivia as consequências de ter trocado muita coisa pela carreira profissional.

O Ulisses mais novo queria saber o que o esperava, onde estaria, no que se formaria e como ganharia a vida. E se surpreendeu bastante com a resposta, que não tinha nada a ver com a Veterinária. O Ulisses jovem queria saber se aquela história de Jornalismo era mesmo a melhor decisão. Ainda não tinha entendido exatamente de onde tinha vindo essa ideia. O Ulisses mais velho observava, talvez as dúvidas deles ainda fossem as suas.

Puxaram um assunto comum: futebol. Era visível a empolgação do mais novo com o time, paixão que descobrira há pouco tempo. O barbudo saboreou o uísque e garantiu a ele que a euforia ainda aumentaria e não passaria jamais, mas, com o tempo, ele aprenderia a contê-la. Um deles idolatrava o Marcelinho, o outro era fã do Tévez e o terceiro tinha, além destes, uma legião de nomes como seus heróis. A Libertadores viria, era questão de tempo, adiantou.

A criança perguntou quando teria um cachorro. O jovem respondeu, falou da cocker e do poodle, e acrescentou sobre sua criação de roedores. O adulto os surpreendeu quando contou da calopsita. Aquela realidade paralela parecia convergir décadas só para provar que as coisas não mudam tanto assim.

O do cavanhaque se gabou contando as aventuras universitárias. Sua cerveja já estava no fim, pediu outra. Revelou acreditar que estava no auge da boa vida e que nunca mais seria tão feliz ou encontraria um grupo de parceiros como o que tinha. O mais velho concordou, sem hesitação. Que bom que ele era feliz e sabia.

Pensou em adiantar que o jovem não se casaria com a namorada, como afirmava há pouco. Nem com a próxima ou com a seguinte, mas que ele se daria bem com isso. No entanto, não achou justo. Era melhor que ele vivesse suas próprias experiências, se desapontasse quando fosse o caso, mas que se encantasse com tanta gente bacana que ainda cruzaria seu caminho por esse mundão.

O barbudo mostrou a tatuagem e o mais novo achou demais. Não imaginava que um dia teria essa coragem. O mais velho contou das viagens e da coleção de experiências por aí. Os outros se interessaram, ainda não sabiam que guardavam dentro deles uma veia de explorador do planeta. Era impossível explicar a eles o que se sente num por do sol no deserto de Uyuni, no mar de Cancun, nas ladeiras de Diamantina, embaixo da Torre Eiffel, em frente às Cataratas, nas ruas de Amsterdã, numa lagoa em Jericoacoara ou na montanha em Machu Picchu. Chegaria a vez deles, felizmente. O jovem se animou.

Um único conselho aos mais novos: que aproveitassem melhor o convívio com os pais e os irmãos. Um dia isso faria muita falta.

O papo fluía e os três concordavam: no fundo, eram mesmo exatamente iguais. A confirmação da tese veio quando o Ulisses de 30 anos confessou que ainda não tinha assistido nada que o encantasse mais que O Rei Leão e contou do boneco do Donkey Kong na estante da sala do apartamento. 

Talvez não fosse só naquele devaneio que o tempo não passava. E talvez lá dentro eles sempre se orgulhassem uns dos outros.

Ergueram um brinde. O jovem arriscou um gole do uísque para acompanhar. Achou horrível, aquilo ainda não era para ele.






Na mesa ao lado, um jovem senhor de cabelos quase grisalhos e manchas brancas na barba bebia água de coco e ouvia a conversa com particular interesse. Seu calendário marcava 15 de maio de 2026. Também achava O Rei Leão insuperável.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

30, solteiro, feliz


São 30 anos de vida, talvez mais ou menos do que isso. Seguramente, parte desse tempo ao lado de outras pessoas, como casais. Daqueles de passeios de mãos dadas, presentes, alianças. Alguns namoros longos e outros tantos casinhos que prometeram, mas não deram em nada. Essa é a história de muitas pessoas dessa idade que hoje estão solteiras. E, acredite, felizes.

O cara e a mulher de 30 anos já tiveram certeza de que tinham encontrado seu grande e eterno amor. Certeza absoluta. Mais de uma vez até. Já sofreram o fim de um relacionamento, choraram e acharam que nunca mais sairiam daquela fossa. Mas saíram e tocaram a vida. E aprenderam, mesmo que na marra, a se darem bem consigo mesmos.

A pessoa dessa idade já viu grandes amigos se casarem. E se dá muito bem com eles. Foi padrinho ou madrinha de alguns, inclusive. E não acha que tem uma vida melhor ou pior do que a deles – são coisas diferentes, cada um na sua. Eles se divertem planejando programas de casais e o futuro dos filhinhos, que já começaram a nascer. Os trintões aproveitam sua total liberdade, como bem querem.

Essa pode ser a palavra que melhor defina a chegada aos 30 “solitária”: liberdade. A pessoa de 30 anos não precisa deixar de fazer nada para não desagradar ninguém. Já fez isso em outros tempos. Agora, está bem grandinha para saber o que quer da vida e pode, por exemplo, definir hoje sua próxima viagem de férias sem se preocupar se um cônjuge prefere visitar a família no interior, descansar uns dias numa praia paradisíaca ou se aventurar numa trilha pela Amazônia, nem se o outro ficaria mais feliz em nem sair da cidade para trocar de carro. Pode pedir demissão, usar as roupas que lhe convém, se rabiscar de tatuagens, comprar um cachorrinho, pode tudo. Tudo seguindo exclusivamente a sua própria vontade. Ah, e isso é bom! Como é bom!

Claro, ser casado ou estar com alguém tem sim suas muitas vantagens. Jamais alguém negaria isso. Mas a luz aqui está em um lado negligenciado da história. Esquecido, principalmente pelas mães dos solteiros, ansiosas pelos netos, caso eles ainda não tenham aparecido vindos de relacionamentos anteriores. Melhor avisá-las de que elas ainda vão esperar mais.

Talvez o melhor de tudo de ser uma pessoa madura solteira é justamente que essa situação não é uma convicção, é uma consequência. Poucos fazem questão de permanecer assim. Também não fazem de mudar. É só que eles não querem mais qualquer um em suas vidas. Para estar ao lado e dividir a rotina tem que ser alguém especial, bacana, parceiro. Alguém que some de verdade. Senão, que as coisas fiquem como estão, elas vão muito bem. A pessoa de 30 anos já teve relacionamentos sérios e sabe exatamente o tipo de cônjuge de que ela não precisa.

Ela vê, quieta, amigos que ostentam casamentos ou longos namoros infelizes e falsos. Provavelmente, não é o caso da maioria, mas existem tantos que fingem uma felicidade irreal. Que queriam muito, mas se frustram por não poderem sair com os amigos sem rumo por aí porque o outro não vai gostar. E, agora, para evitar problemas, a vontade desse outro vem antes da dele, infelizmente. Ou, o que é bem comum, amigos que esperam a mínima brecha para fugir e agir como solteiros, serem livres por alguns poucos instantes proibidos. Esse tipo de relacionamento, essa vida dúbia, não convence mais um adulto solteiro. Na verdade, já faltaria paciência pra isso.

O solteiro ou solteira de 30 anos, ou 25 ou 40 ou qualquer outra idade, é livre para se apaixonar sempre que acontecer sem peso na consciência. Pode dormir com quem quiser. Pode dormir com muitos ou com ninguém, a escolha é dele. Pode respirar ares de juventude e ir outra vez a uma micareta. Ou pode sair para conhecer gente nova num barzinho de MPB. Pode ter amores espalhados por todos os cantos, pode voltar de cada viagem que faz com uma nova paixão, pode passar um feriado com um affair que mora longe no maior love do mundo. Sem ser injusto com ninguém, principalmente com ele mesmo. Ele é o dono dos próprios pensamentos.

Pra completar, essa pessoa pode, a qualquer momento, conhecer alguém que, sem esforço, a convença a abrir a porta da sua casa e da sua vida para ela. Mas ela não tem pressa disso. O cara de 30 não procura mais uma donzela. Se for para estar junto dele, que seja uma mulher de verdade, com cabeça, com histórias pra contar. A mulher de 30 não quer mais um príncipe encantado. Muito menos ser a princesa de ninguém. A palavra-chave passa a ser parceria, sintonia. Ou autossuficiência.

A pessoa de 30 não faz questão de chegar aos 31 solteira. Nem acompanhada. Ela deixa acontecer. O que ela quer mesmo é acordar amanhã feliz, leve e com a certeza de que tem ao lado quem lhe faz bem – seus companheiros solteiros, seus casais de amigos, a família ou, quem sabe, um novo casinho que é justamente quem vai ficar de vez na sua vida. E se esse affair não der certo, está de boa também. Paz e amor. Próprios.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Vocês eram inseparáveis


Vocês eram inseparáveis.

Tinham se conhecido há pouco tempo e já eram unha e carne. Era até raro ver um longe dos outros. Naquela fase de início de faculdade, auge da juventude, últimas descobertas do mundo real e começo da vida adulta de verdade, vocês formaram uma grande e natural família. Vocês estudavam juntos, geralmente almoçavam juntos, talvez tenham morado juntos. E vocês se divertiam juntos.

Vocês cuidavam uns dos outros quando era preciso. Vocês se preocupavam, se davam remédios, puxões de orelhas, carinhos e conselhos, do alto dos seus 18 anos de inexperiência de vida. Colocavam o nome no trabalho em grupo quando o outro não podia contribuir, ensinavam aos amigos aquela matéria chata que a maioria não tinha entendido. Uma turma grande, de jovens homens e mulheres que rapidinho aprenderam a se amar.

Iam às mesmas festas e colecionavam histórias. Das mais malucas. Aprenderam a beber juntos, depois de algumas tentativas malsucedidas, diga-se de passagem. Um foi a memória do outro no dia seguinte àquela madrugada histórica de balada.

Vocês tinham muitas afinidades. Mas eram diferentes, claro, e isso foi se tornando cada vez mais evidente com o passar dos anos. Só que em nada interferiu na amizade de vocês - muito pelo contrário, vocês tinham tanta coisa em comum que, mesmo depois de conhecerem mil outras pessoas, se mantiveram por perto uns dos outros.

Foram anos assim.

Aí vocês se formaram. Tiveram o melhor baile do mundo e cada um foi seguir sua vida.

Um arrumou um emprego em pouco tempo, outros demoraram mais. Um voltou pra cidade dos pais, outro foi tentar a vida na capital, mais um foi estudar outro curso. E vocês se viram longe uns dos outros. Fisicamente muito longe.

Ainda existia a comunidade da turma no Orkut, depois um grupo no Face e de uns tempos pra cá vocês se falam pelo Whatsapp. É o que dá no dia a dia. E ali, naquele mundinho particular, vocês ainda são os mesmos de sempre.

Alguns passaram em concursos públicos e foram morar longe, uns desistiram daquela carreira e outros se casaram – quem diria! Vocês compartilharam as primeiras frustrações profissionais e comemoraram juntos os primeiros sucessos. Mas vocês não estão mais na rotina uns dos outros. Não tem mais aula, não tem biblioteca, restaurante, filminho com pipoca, almoço no fim de semana na casa de alguém, muito menos festa juntos. Só a saudade da melhor fase da vida. De quando vocês eram felizes e sabiam.

Mas tem reencontros. Sempre que dá. Dá pouco, a vida adulta é cruel, mas às vezes dá. Uma viagenzinha juntos para qualquer canto lava a alma e faz vocês voltarem no tempo. Não importa se vocês não aguentam mais tanta farra, se já estão bem mais gordinhos e cheios de cabelos brancos (a cada dia com menos cabelos e já apareceram umas ruguinhas). Juntos, vocês ainda são aqueles mesmos jovens, bobos, puros, divertidos. Agora, ao lado uns dos outros vocês passam o dia relembrando velhas e boas histórias desses longos anos de amizade enquanto constroem as novas, meio sem perceber.

Vocês têm o que a vida oferece de mais precioso: boas pessoas pelo caminho.

Vocês eram inseparáveis. E vão continuar sendo, pra sempre. Insuperáveis.


Viçosa, Minas Gerais, janeiro de 2008

Canoa Quebrada, Ceará, outubro de 2015

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Adenor, o peixe campeão do mundo


Mudança de cidade, de estado, de ambiente de trabalho. Distância, muita distância da família e dos amigos. Era inevitável: o ritmo frio da metrópole (embora ela mesmo seja bastante quente) conseguiu me jogar pra baixo e eu me vi sozinho outra vez na vida, longe de tudo que eu gosto. Sozinho ao lado de milhões de pessoas.

Se eu vim foi porque quis, a falta do “lá” faz parte do processo. E para tudo dá-se um jeito, sempre foi assim. Depois de um tempinho, resolvi acabar de vez com o problema da ausência de companhia. Pode até não ter sido a decisão mais esperada para um cara da minha idade. Mas foi consciente. Comprei um beta.

O peixinho era bacana, engraçadinho, azul. Era legal ficar observando o movimento das barbatanas vermelhinhas dele. Chamei-o de Adenor, acho que combinou. Não quis espalhar, mas é uma homenagem ao último brasileiro campeão do mundo como treinador de futebol. Pelo meu time, aliás. Quem sabe, o peixe seria um estágio para a compra do cachorro.

Eu conversava com o Adenorzinho, o alimentava com umas bolinhas de ração. Viajava em ver o bicho mergulhar e subir de novo pra tomar um ar. Durante dias, fortalecemos nossa amizade, aos poucos.

Até que, numa horas dessas, reparei que um olho dele estava diferente. Na verdade, estava feio, esbugalhado, pra fora. De cortar o coração. Fiquei em choque. Pesquisei na internet: uma doença causada por bactéria. Começava de um lado, atacava o outro, o peixe deixava de comer, poderia inchar outras partes do corpo. Geralmente era fatal.

Mas havia uma chance.

Existia um tratamento, o Google me contou. Um remédio, dissolvido na água, trocada por alguns dias, que, se usado no começo da enfermidade, poderia dar certo, embora as possibilidades de cura não fossem nada animadoras. Liguei para o pet shop onde eu o comprei, eles tinham o produto.

No outro dia, eu estava lá. Fiz um kit: um remédio que enfrentava bactéria e outro para fungo. Perguntei ao dono da loja se me daria um desconto, eu tinha comprado o bicho há poucos dias. Ele me fez uma contraproposta: eu levava o Adenor de volta e ele me dava outro peixe. Falou que se responsabilizaria pelo tratamento. Só que os remédios que eu estava levando eram mais caros do que o peixe tinha custado. Eu sabia bem qual seria o destino dele lá.

E agora? Eu entregaria meu amigo à própria sorte em troca de outro animal até então desconhecido pra mim? Eu havia procurado o Adenor justamente para sermos companhia um do outro. E é assim que as amizades são conduzidas? Se fosse uma pessoa, doente, eu a abandonaria, mesmo sabendo qual seria o seu fim?

Paguei pelos remédios, decidi tentar salvar o meu peixe. Corri pra casa para começar o tratamento. Enquanto houvesse chance, haveria esperança.

Precisava de um lugar maior para o período de quarentena, era necessário misturar os produtos em muitos litros de água para fazer as soluções que poderiam salvá-lo. Como eu não tinha, o peixe foi morar num cooler que geralmente conserva minhas cervejas geladas fora de casa. Segui as bulas e o Adenor, doente, estava mergulhado em uma estranha solução azul Avatar. Pedi a ele que confiasse em mim, nunca digo isso em vão. Enfrentaríamos essa juntos.

Os dias se passaram, a angústia persistia. Cada instante era importante na luta. Trocava a água diariamente, refazia as soluções. Devagar, o olho infectado ia melhorando. A esperança aumentava. O inchaço ocular do pequeno azulzinho diminuía. Acabava o prazo estipulado na bula. Adenor, o peixe campeão do mundo, estava, enfim, curado.

Adenorzinho deixou o cooler, voltou ao seu aquário e está lá feliz, com os olhos e a vida nos seus devidos lugares. Nadando, todo serelepe, pra baixo e pra cima, ostentando a bela cauda avermelhada. Tem hora que parece dar cambalhotas. Valeu não termos desistido um do outro.

Você venceu, amiguinho. Nós vencemos.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Expiatório


A sentença foi asperamente direta: prisão perpétua. Nunca mais veria a luz do Sol, condenado a passar o resto dos seus dias trancafiado naquele minúsculo espaço solitário. Pior, sem qualquer julgamento. Sua inocência, embora absolutamente presumível, sequer foi considerada. Muito menos o histórico de bons precedentes.

As condições de sobrevivência se tornaram as piores possíveis. Escuridão, cheiro de mofo, chão duro. E a total ausência de qualquer contato externo, de afago, essa a mais triste consequência do cárcere decorrente de um crime que ele não cometera. Do céu ao inferno em instantes, sem chance de defesa, sem júri.

A primeira noite sozinho na masmorra foi péssima, a pior. Jogado, ainda não acreditava no que estava acontecendo, mesmo depois do estrondo das portas batidas, quando o silêncio absoluto ditava o ritmo seco da nova realidade. O clima quente e abafado compunha um cenário de total abandono. Talvez nunca mais tivesse contato com uma pessoa. E nunca mais sentisse um abraço. Não pôde perceber a claridade do raiar da manhã. E assim se passaram semanas. Meses. Os primeiros anos.

Os pelos da face gradativamente se coloriram de um cinza triste. Tornou-se a imagem do descuido e do desamparo. Condenado por um crime que ele não cometera, se lembrava cada vez menos dos dias bons, de risos e afeto. Das noites na cama de casal macia limpinha. Aos poucos, a memória começava a se apagar, consumida pela escuridão habitual do calabouço empoeirado.

Quando a esperança já não fazia mais parte do seu vocabulário, anos depois da covarde sentença, foi surpreendido com uma fresta de luz. Os feixes de vida cresceram e iluminaram a sua solitária. As portas se abriram e todo o ambiente respirou ar puro. Outra vez, estava frente a frente com seu algoz, a pessoa que havia lhe imposto autoritariamente a pena perpétua.

O carrasco o fitou por instantes e o tomou pelos braços num gesto silencioso carregado de arrependimento. Ofereceu a ele um abraço de reconciliação e um tímido, mas sincero, sorriso de pedido de desculpas.

Ele estava livre de novo.

De volta à mesma cama macia, preferiu esquecer-se dos infinitos dias em que cumpriu pena num canto do guarda-roupa, condenado ao esquecimento e culpado por ser um ursinho de pelúcia dado de presente de Dia dos Namorados em um relacionamento que terminou. Enfim, foi absolvido. Salvo pelos poderes do tempo.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Missão Sudeste concluída

 Continuação de outra missão, também finalizada com sucesso


Mudar de cidade nunca foi novidade pra mim. Chegar (e permanecer) perdido, procurar casa, fazer novos amigos. Conhecer a cultura, a comida, o sotaque e me confundir com os regionalismos. As mudanças começaram quando eu tinha um ano, pelo trabalho do pai, depois pela faculdade e as oportunidades profissionais. Eu tiro de letra. Afinal, já são dez experiências dessas na bagagem. Chegou a próxima, a primeira pra tão longe da família e da grande maioria dos amigos. Destino: Fortaleza.

Exatamente quando completo dois anos de Montes Claros, deixo a cidade, e o meu estado, em busca de continuar construindo uma carreira bacana. Se a sede da empresa está lá, e nela as oportunidades, eu parto, sem medo.

Sim, dá um friozinho na barriga. Sim, dá saudade da família e às vezes fica foda. Não, não me acho mais corajoso do que ninguém. Só acho que se a gente tem planos e acredita neles, é só correr atrás e fazer por onde que as coisas acontecem.

Foram anos muito bons em Montes Claros. Convivi com colegas em um excelente ambiente de trabalho e aumentei minha coleção de grandes amigos. Valeu demais! Deixo aqui pessoas importantes e um pedacinho de mim nesse especial sertão mineiro.

Hoje, sou eu o retirante. Que parto pra longe em busca de uma vida melhor e deixo para trás todos os meus amores.

Depois de uma vida nas Minas Gerais, alguns anos morando no Rio e no Espírito Santo e sob forte influência da cultura paulista – o futebol que o diga –, concluo, feliz, a minha Missão Sudeste. Partiu praia.

Missão Nordeste iniciada.


(...)

Às vezes a felicidade demora a chegar
Aí é que a gente não pode deixar de sonhar
Guerreiro não foge da luta e não pode correr
Ninguém vai poder atrasar quem nasceu pra vencer

É dia de sol, mas o tempo pode fechar
A chuva só vem quando tem que molhar
Na vida é preciso aprender se colhe o bem que plantar
É Deus quem aponta a estrela que tem que brilhar

Ergue essa cabeça mete o pé e vai na fé
Manda essa tristeza embora
Basta acreditar que um novo dia vai raiar
Sua hora vai chegar