domingo, 23 de fevereiro de 2014

A primeira década

Eu acordei cedo, não queria me atrasar. Acabava de iniciar o dia mais esperado da minha vida, ou pelo menos dos mais recentes três anos. Peguei o ônibus em Teixeiras, onde eu estava hospedado só por essa noite na casa de amigos, e vi as expectativas, que já eram gigantes, aumentarem a cada um dos 12 km de estrada.

Cheguei e, naturalmente perdido, tentei descobrir para onde eu deveria ir. Instintivamente, perguntei onde era o meu departamento a algumas pessoas aleatórias e nenhuma delas soube me explicar. Meu pé atrás me fez pensar se tratar de uma pegadinha típica dos mais experientes, mas depois viria a saber que ainda não existia mesmo aquele departamento na época. Minha experiência de onde eu vinha me traiu, lá é que as coisas funcionavam separadas. Eu conheceria em breve um mundo acadêmico muito mais integrado.


Meio em cima da hora, achei a sala, uma entre tantas de um corredor. Pelo vidro da porta, vi que já havia uma quantidade considerável de pessoas lá dentro e um professor falando. Não sabia se eram da aula anterior que ainda não havia acabado ou eram os meus futuros colegas. Tive receio de entrar na aula errada e começar com o pé esquerdo minha carreira universitária. Tive receio de perguntar a alguém e ser ridicularizado pelo total desconhecimento da situação. No corredor, vi duas meninas com o olhar perdidamente questionador, tal qual o meu deveria estar, e nos aproximamos. Compartilhávamos a mesma dúvida: era ou não a nossa classe? Decidimos arriscar, juntos. Abrimos vagarosamente a porta e entramos na aula de Filosofia, nossa primeira na Universidade Federal de Viçosa.

O professor estranho foi o só o primeiro dos que nós conhecemos. Ao fim da aula, apareceram os temidos veteranos e eles iniciaram o temido trote. Cá, entre nós, não precisa ter tido temor algum, foi muito tranquilo. Eu, que não cortava o cabelo desde que o resultado do vestibular havia sido divulgado, fui a alegria dos veteranos com tesouras nas mãos. Mais tarde, passaria em um salão do qual eu tinha recebido, no dia da matrícula, uma propaganda anunciando que rasparia a cabeça gratuitamente para calouros e eu me sentiria mais universitário do que nunca: careca e cabeçudo.


No mesmo dia, conheci o RU. Foi o primeiro almoço de uma série que duraria anos, no mesmo lugar. Esse primeiro, com os veteranos e já comecei algumas amizades que duram até hoje. Na mesma noite, a primeira festa, a calourada. Em uma república, muitas bebidas, novos amigos. Lembro-me de que alguns colegas de sala não foram à festa porque tinham medo de que os veteranos tivessem preparado uma segunda parte do trote para lá, o que não aconteceu. Esses sim começaram a faculdade com o pé esquerdo. Cabe aqui uma confissão: até aquele momento, eu não queria ter me mudado para Viçosa. Queria ficar em Juiz de Fora, fazer a faculdade de lá. Mas ali eu mudei completamente de opinião e não me arrependi, nem por um segundo, da vida que o destino escolheu para mim.

Esse aí foi o resumo da minha primeira segunda-feira em Viçosa, o inesquecível 1º de março de 2004. Na terça, fomos a um bar. Na quarta, a uma festa na república das simpáticas e alegres veteranas, as Joselitas. Esse evento foi um dos mais fantásticos e inesquecíveis dos quatro anos de faculdade. Quase todos da sala foram. Lá, terminamos de nos apresentar, nos divertimos demais, conheci mais uma infinidade de pessoas e já dava para ter uma séria ideia de quem seriam os que me acompanhariam integralmente por toda a jornada.

Um ano depois, eu era um dos donos da festa. A república que eu fundei no fim do primeiro período e residi até o último dia de Viçosa teve a honra de promover a primeira festa no dia que as aulas começaram em 2005, 2006 e 2007, as Coalouradas. Esse humilde apartamento com localização desfavorecida no meio do morro, divisão de cômodos questionável, mofo acumulado nas paredes e vizinhos chatos, mas com uma sala de tamanho invejável, sediou ainda muitas outras festas durante esses anos. Foi até emprestado para festas alheias. Bons tempos aqueles.

O tempo passou, nós nos formamos, cada um seguiu sua vida. Em Viçosa, chegamos adolescentes, mas adquirimos vivência e saímos adultos, cada um com um esboço do próprio futuro traçado. O que nunca mudou é a vontade que a gente sente de estar junto. Eu tive a sorte de conhecer e conviver com os melhores caras do mundo. E é pelas mais simples memórias de lá que eu rabisquei, despretensiosamente, minha eterna melhor obra, a Viçosa viçosa.


Aquele pessoal que chegou antes de mim para a aula do dia 1º de março de 2004, que eu observava receoso de não ser a minha classe e eu passar vergonha ao entrar na sala, deixou de ser uma turma de faculdade, há muito tempo. Nessa primeira década, que se encerra daqui poucos dias, vivemos muita coisa juntos, nos quatro anos de convívio diário e nos seis anos de distância. Quando completar dez anos que nos conhecemos, estaremos juntos de novo. Vou passar o Carnaval com, pelas minhas contas, mais de dez deles. E olha que eu nem queria ir pra Viçosa! Sem querer, encontrei os melhores amigos.


Deve mesmo ter alguém, que de algum lugar, decide nossos rumos pela gente, sem se importar muito com o que a gente pede. E eu vou sempre dever essa a Ele.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Momento próprio


Quando deu por si, o vidro já estava marcado próximo à sua boca pela respiração. Não sabia há quanto tempo estava ali, parado, olhando pela janela. Perdeu as contas de quantas ondas já haviam se formado na imensidão azul do outro lado da rua. Enfim, estava em paz. Cansado, pernas doloridas, mas em paz.

A viagem fora cansativa, mas aparentemente tudo saía como planejado. A pousada era bem confortável e, como ele fez questão, de frente para o mar. Tinha até ar condicionado. O passeio era o primeiro passo para ele retomar sua rotina e sair do buraco em que a vida lhe colocara.

Terminar o relacionamento definitivamente não foi fácil. Seis anos de união, o último deles sob o mesmo teto. Até que acabou, ela não quis mais e se foi. Desde então, ele passava os dias no apartamento que fora do casal e ainda sentia o cheiro dela em tudo. Esperou o dia que ela decidisse voltar. Esse dia que nunca chegou e, agora ele bem sabia, nem chegaria. Ela estava feliz e ele não a culpava por isso. Pensava que as pessoas tinham o direito de dar importâncias distintas a um mesmo momento.

Então, decidiu viajar. Sozinho. Conhecer um estado novo, ver outra vez o mar. Seria a oportunidade perfeita para sair de vez do casulo que criara e se escondera todo esse tempo. A vida era mais do que uma relação a dois. As pessoas tinham o direito de dar importâncias distintas a um mesmo momento! O dele era de se redescobrir, de recomeçar. Escolheu a dedo o destino, a hospedagem, a praia. Agora, depois de um dia de viagem, com a mochila aos pés, olhava o mar pela janela, tal como havia esperado ansiosamente.

Alguém bateu à porta e o trouxe de volta ao mundo real. Estranhou, foi abrir.

Sem jeito, a camareira pediu desculpas, disse que precisava repor o consumo do último hóspede, que havia deixado a pousada há pouco. Ele consentiu, claro. E ela entrou no quarto segurando três garrafinhas de água e meia dúzia de pacotes de preservativos.

Ele voltou a olhar o mar, azulão. Reflexivo, pensava que as pessoas tinham o direito de dar importâncias distintas a um mesmo momento. Mas bem que poderia ter mais do que alguns minutos de diferença entre o momento dele e o dos outros.