Parte 1 – A saga
A história começa no início da noite de sábado, quando tomei o ônibus. Talvez poucas pessoas tenham realizado o sonho de ver o time do coração jogar pela primeira vez nas mesmas circunstâncias que eu: em outro estado, sozinho no estádio, em viagem com a torcida adversária.
Depois de uma noite e manhã de bagunça e cerveja no ônibus — que quebrou algumas vezes, claro — chegamos à cidade. Já domingo, a primeira parada é a sede do clube, do clube deles. Salas de troféus, loja oficial, campos de treinamento e eu contando os minutos para ter acesso à minha turma, para, enfim, me sentir em casa.
No caminho para o estádio, pego o ingresso. O meu é diferente do de todo mundo, é de cadeira. Eles ficam na arquibancada. Recebo as últimas orientações, marcamos o ponto de encontro depois do jogo e me despeço. Caminho entre a multidão vestida com o uniforme do oponente, enquanto procuro a minha galera. Falta mais de uma hora para o jogo.
Dou a volta pelo lado de fora do estádio. É muito grande, deve ser mesmo o maior do mundo. A certa altura ouço o barulho vindo do interior do gigante de concreto: “Timãããão ê ô. Timãããão ê ô”. Um arrepio inexplicável me desce pela espinha. Eu estava perto, a hora se aproximava.
Chego à entrada, mostro meu ingresso e então sou informado pelo pessoal da revista que os visitantes ficam na arquibancada, não na cadeira. O mundo para, começo a tremer, minha mente é tomada por pensamentos negativos. A mocinha da revista diz que vai me ajudar, me leva a um policial militar e expõe minha situação — parece que ela foi com a minha cara. O PM mira o ingresso, me fuzila com os olhos e balança a cabeça. “Já era”, sentencia, acentuando o sotaque carioca. Pro Corinthians tudo tem mesmo que ser mais difícil.
Caminho desolado tentando pensar em alguma coisa. Meu telefone toca e é o organizador da excursão, ligando de dentro do estádio: “Os Corinthianos estão na arquibancada. Volte à entrada, um cara vai te esperar lá e trocar seu ingresso”.
Lá vou eu, refaço todo o caminho e aguardo o tal cara, que ele até chegou a dizer quem era, mas não deu para ouvir direito. Espero, espero, espero, ligo para o organizador, ouço a mensagem de telefone desligado. Desisto, o rapaz não vem. Ainda me restava algum dinheiro, o suficiente para comprar outro ingresso. Procuro a bilheteria.
Conto a história à moça que vende ingressos. Ela me assegura: é “tranquilo” entrar com o bilhete que tenho. Volto ao portão de entrada da minha torcida e a esta altura são uma volta e meia no estádio, estou ofegante e suado. Passo pela revista e, como quem não quer nada, coloco o cartão na máquina, que trava. O homem que controla a catraca faz cara de assustado e eu também. Ele pega o ingresso, confere e me informa que estou no setor errado.
Narro ao sujeito minha saga. Lembro a ele o que me dissera a moça da bilheteria e me reforço com os argumentos de que estou sozinho na cidade e não tenho mais dinheiro. Ele me pede para esperar e chama o fiscal do estádio. O fiscal vem, confere o ingresso e joga uma bigorna em cima das minhas esperanças. Com aquele cartão não tinha como entrar naquele setor e ponto final.
Vou de novo à bilheteria. Minhas pernas já não aguentam mais andar, começam a querer parar. Compro o novo ingresso, pago R$ 30 e ainda consigo vender o outro por R$ 10, metade do custo original para o setor. Força nas pernas que o caminho de volta à entrada da arquibancada é longo.
De novo a revista, a PM, a catraca. Mas agora com final feliz. São Jorge estava do meu lado! Subo a passos lentos a rampa do Maracanã e avisto e a Fiel.
Parte 2 – A Fiel
A espera valeu a pena. Foram 23 anos, dois meses e 25 dias do mais absoluto Corinthianismo à distância. Adentro o estádio ao som de um grito de torcida e já me infiltro na mística Gaviões da Fiel. A partir daí tiro forças sabe-se lá de onde para permanecer em pé durante dois tempos de 45 minutos apoiando o Coringão.
Quando os jogadores subiram ao campo, vi que a andança toda não importava mais. Eu estava diante do Felipe, do Chicão e do William, Edu, Dentinho, Mano Menezes. São figuras de muito prestígio para mim, heróis pessoais, autores de muitas alegrias.
Eu precisava tirar a limpo duas coisas. A primeira era entender, sentindo, o que é a Fiel. Já posso afiançar: é mesmo a torcida que não para, que canta para o Timão ganhar. O bando de loucos, que nunca abandona. Uma dividida ganha, ataque perdido ou gol sofrido, nada altera a força e o tom dos brados de incentivo aos que trajam o manto alvinegro na batalha das quatro linhas. Por um dia eu fui um Gavião.
É emocionante ver de perto os mastros das bandeiras tremulando, tinha uma em homenagem ao Marcelinho, outra ao Neto e mais uma do Senna. Como criança, aproveitei cada instante. Foi lindo ver a Gaviões, a Estopim e a Pavilhão 9 cantando parabéns à Camisa 12 por mais um ano de vida e, todas juntas, entoando os gritos de guerra da aniversariante. Fantástico olhar para cima e acompanhar a lenta ascensão das bexigas brancas e negras levantando faixas rumo ao firmamento.
Depois de constatada a energia e a vibração únicas vindas da parte paulista do estádio, a segunda coisa a entender era a torcida adversária. Confirmei outra suspeita: a escassez de conquistas importantes do futebol carioca é escondida atrás de atos de irreverência. O “estadual mais charmoso do Brasil” oculta um nível técnico decadente. A torcida se engana, com atos como, ao invés de criticar a incompetência da diretoria por não conseguir efetuar uma determinada contratação de peso, preferir tentar ridicularizar um atleta que jamais desonrou o clube — pelo contrário, sempre o enaltece. Para mim, foi um tiro errado. O futebol do Rio é, hoje, um fenômeno falso.
A partida acaba e a dor nas pernas reaparece com tudo. Permaneço por um tempo a contemplar a garra do batalhão preto e branco na arquibancada, que continua a explanar ininterruptamente o amor pelo Time do Povo. Quando os portões são reabertos, saio tranquilo, com o sonho realizado. A Fiel fica, com a mesma postura de apoio incondicional demonstrada há quase três horas, quando os atletas sequer haviam subido ao campo. Eu levo comigo um pouco desta energia.
Ah, o resultado foi um a zero para o Flamengo. Mas, sei lá, acho que ninguém saiu mais vitorioso do que eu.
Perdoem-me, flamenguistas. Foi escrito muito mais com o coração que com a razão.
A história começa no início da noite de sábado, quando tomei o ônibus. Talvez poucas pessoas tenham realizado o sonho de ver o time do coração jogar pela primeira vez nas mesmas circunstâncias que eu: em outro estado, sozinho no estádio, em viagem com a torcida adversária.
Depois de uma noite e manhã de bagunça e cerveja no ônibus — que quebrou algumas vezes, claro — chegamos à cidade. Já domingo, a primeira parada é a sede do clube, do clube deles. Salas de troféus, loja oficial, campos de treinamento e eu contando os minutos para ter acesso à minha turma, para, enfim, me sentir em casa.
No caminho para o estádio, pego o ingresso. O meu é diferente do de todo mundo, é de cadeira. Eles ficam na arquibancada. Recebo as últimas orientações, marcamos o ponto de encontro depois do jogo e me despeço. Caminho entre a multidão vestida com o uniforme do oponente, enquanto procuro a minha galera. Falta mais de uma hora para o jogo.
Dou a volta pelo lado de fora do estádio. É muito grande, deve ser mesmo o maior do mundo. A certa altura ouço o barulho vindo do interior do gigante de concreto: “Timãããão ê ô. Timãããão ê ô”. Um arrepio inexplicável me desce pela espinha. Eu estava perto, a hora se aproximava.
Chego à entrada, mostro meu ingresso e então sou informado pelo pessoal da revista que os visitantes ficam na arquibancada, não na cadeira. O mundo para, começo a tremer, minha mente é tomada por pensamentos negativos. A mocinha da revista diz que vai me ajudar, me leva a um policial militar e expõe minha situação — parece que ela foi com a minha cara. O PM mira o ingresso, me fuzila com os olhos e balança a cabeça. “Já era”, sentencia, acentuando o sotaque carioca. Pro Corinthians tudo tem mesmo que ser mais difícil.
Caminho desolado tentando pensar em alguma coisa. Meu telefone toca e é o organizador da excursão, ligando de dentro do estádio: “Os Corinthianos estão na arquibancada. Volte à entrada, um cara vai te esperar lá e trocar seu ingresso”.
Lá vou eu, refaço todo o caminho e aguardo o tal cara, que ele até chegou a dizer quem era, mas não deu para ouvir direito. Espero, espero, espero, ligo para o organizador, ouço a mensagem de telefone desligado. Desisto, o rapaz não vem. Ainda me restava algum dinheiro, o suficiente para comprar outro ingresso. Procuro a bilheteria.
Conto a história à moça que vende ingressos. Ela me assegura: é “tranquilo” entrar com o bilhete que tenho. Volto ao portão de entrada da minha torcida e a esta altura são uma volta e meia no estádio, estou ofegante e suado. Passo pela revista e, como quem não quer nada, coloco o cartão na máquina, que trava. O homem que controla a catraca faz cara de assustado e eu também. Ele pega o ingresso, confere e me informa que estou no setor errado.
Narro ao sujeito minha saga. Lembro a ele o que me dissera a moça da bilheteria e me reforço com os argumentos de que estou sozinho na cidade e não tenho mais dinheiro. Ele me pede para esperar e chama o fiscal do estádio. O fiscal vem, confere o ingresso e joga uma bigorna em cima das minhas esperanças. Com aquele cartão não tinha como entrar naquele setor e ponto final.
Vou de novo à bilheteria. Minhas pernas já não aguentam mais andar, começam a querer parar. Compro o novo ingresso, pago R$ 30 e ainda consigo vender o outro por R$ 10, metade do custo original para o setor. Força nas pernas que o caminho de volta à entrada da arquibancada é longo.
De novo a revista, a PM, a catraca. Mas agora com final feliz. São Jorge estava do meu lado! Subo a passos lentos a rampa do Maracanã e avisto e a Fiel.
Parte 2 – A Fiel
A espera valeu a pena. Foram 23 anos, dois meses e 25 dias do mais absoluto Corinthianismo à distância. Adentro o estádio ao som de um grito de torcida e já me infiltro na mística Gaviões da Fiel. A partir daí tiro forças sabe-se lá de onde para permanecer em pé durante dois tempos de 45 minutos apoiando o Coringão.
Quando os jogadores subiram ao campo, vi que a andança toda não importava mais. Eu estava diante do Felipe, do Chicão e do William, Edu, Dentinho, Mano Menezes. São figuras de muito prestígio para mim, heróis pessoais, autores de muitas alegrias.
Eu precisava tirar a limpo duas coisas. A primeira era entender, sentindo, o que é a Fiel. Já posso afiançar: é mesmo a torcida que não para, que canta para o Timão ganhar. O bando de loucos, que nunca abandona. Uma dividida ganha, ataque perdido ou gol sofrido, nada altera a força e o tom dos brados de incentivo aos que trajam o manto alvinegro na batalha das quatro linhas. Por um dia eu fui um Gavião.
É emocionante ver de perto os mastros das bandeiras tremulando, tinha uma em homenagem ao Marcelinho, outra ao Neto e mais uma do Senna. Como criança, aproveitei cada instante. Foi lindo ver a Gaviões, a Estopim e a Pavilhão 9 cantando parabéns à Camisa 12 por mais um ano de vida e, todas juntas, entoando os gritos de guerra da aniversariante. Fantástico olhar para cima e acompanhar a lenta ascensão das bexigas brancas e negras levantando faixas rumo ao firmamento.
Depois de constatada a energia e a vibração únicas vindas da parte paulista do estádio, a segunda coisa a entender era a torcida adversária. Confirmei outra suspeita: a escassez de conquistas importantes do futebol carioca é escondida atrás de atos de irreverência. O “estadual mais charmoso do Brasil” oculta um nível técnico decadente. A torcida se engana, com atos como, ao invés de criticar a incompetência da diretoria por não conseguir efetuar uma determinada contratação de peso, preferir tentar ridicularizar um atleta que jamais desonrou o clube — pelo contrário, sempre o enaltece. Para mim, foi um tiro errado. O futebol do Rio é, hoje, um fenômeno falso.
A partida acaba e a dor nas pernas reaparece com tudo. Permaneço por um tempo a contemplar a garra do batalhão preto e branco na arquibancada, que continua a explanar ininterruptamente o amor pelo Time do Povo. Quando os portões são reabertos, saio tranquilo, com o sonho realizado. A Fiel fica, com a mesma postura de apoio incondicional demonstrada há quase três horas, quando os atletas sequer haviam subido ao campo. Eu levo comigo um pouco desta energia.
Ah, o resultado foi um a zero para o Flamengo. Mas, sei lá, acho que ninguém saiu mais vitorioso do que eu.
Perdoem-me, flamenguistas. Foi escrito muito mais com o coração que com a razão.
7 comentários:
No Rio sou Curintia.
No ES também...
Até em Brasila eu sou Curintia!
A primeira vez de um corintiano no estádio é como um muçulmano visitando Meca, é uma experiência religiosa. Eu tive o privilégio de estrear no Pacaembu, numa vitória de 2x0 sobre o São Caetano, e o gol que o Jô marcou aquele dia, pertinho de onde estávamos eu, Bruno Winckler e Dani Ribeirão, pra mim é um dos tentos mais fantásticos já assinalados na história do esporte bretão.
Convivendo com o cara que sonha com Gamarra dando-lhe conselhos. Que ficou igual louco atrás da camisa do Teve. Posso dizer que você sempre foi um Gavião, sendo que dessa vez você pode voar livre.
Parabéns por mais um sonho realizado meninôncio.
Pô, veio aqui e nem avisou, cara? Um monte de amigos meus estavam lá no estádio, eu mesmo só não fui porque minha mãe veio me visitar no dia.
Bem, falando como flamenguista, eu tenho que dizer que realmente o futebol carioca está numa fase ruim e faz tempo, então nem posso questionar a sua análise. O carioca é legal, claro, mas o Vasco é um time de série B, o Fluminense é o time "organizado" menos organizado do mundo e o Botafogo é...é...o Botafogo, né?
Sobre o Ronaldo, só quem é flamenguista pra entender...Mas a boneca inflável com pênis foi uma baita sacada, vai...
Ótimo texto, Ulisses! A descrição ficou impecável: parecia que eu estava lá, vendo tudo... Muito legal mesmo!
E concordo: o futebol carioca não é mais o mesmo... mas fazer o que né!
Parabéns pelo texto de novo!
Esse texto me lembrou a primeira vez q eu fui no estádio do meu time.
A primeira vez vendo seu time jogando ao vivo é inesquecível. Desde a saída, a ansiedade de chegar logo, os minutos antes da entrada no estádio, tudo aquilo q vc vê e participa dentro do estádio e a volta, só com boas lembranças. Pra quem gosta de futebol, ver seu time jogar não tem preço!
Belo texto menino!
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