terça-feira, 28 de junho de 2011

Primo coragem


A primeira lembrança que ele tem da infância é de uma brincadeira qualquer ao lado da prima. Nunca mais viria uma criança linda como aquela: cachinhos nos cabelos, traços singelos no rosto e grandes olhos que brilhavam. Ele não sabia por que, mas já sentia que aquela garotinha o fazia bem de um jeito diferente.

Eles não moravam na mesma cidade. Culpa do emprego do pai, que o levara para longe do restante da família. Ainda bem que existia o Natal, aguardado durante longos meses, para juntar todo mundo na farta ceia da casa da avó, com direito a presentes, tio vestido de Papai Noel e pelo menos um reencontro anual com a prima.

No início da adolescência, ele se deu conta de que era mesmo dela que gostava. De verdade. Sonhava com o primeiro beijo, imaginava como seria namorar escondido da família por um tempo e até o dia em que se casariam – ela deslumbrante, vestido branco ressaltando o olhar. Confidenciou seus pensamentos a um ou outro amigo, que o aconselharam a abrir o jogo com ela. Mas, ano após ano, faltava coragem. E se ela dissesse não?

Ela cresceu e ficou cada vez mais bonita. O corpo começou a ganhar formas, ficou vaidosa e os olhos pareciam brilhar ainda mais. Era engraçada, carinhosa, tinha planos de ser médica – assim como ele. Talvez por ela ser tão perfeita, a timidez sempre vencia o sentimento puro que ele trazia e ele não se declarava. O primo teve o primeiro beijo com uma vizinha, a prima com um colega de sala.

Na festa de 15 anos dela, ele decidiu que a pediria em namoro. Mas ao vê-la, mais linda que nunca, dançando a valsa com outro primo (da outra família dela e mais velho que eles), travou e não conseguiu dizer nada. No dia seguinte, ela revelaria ao primo preterido que preferiria ter dançado com ele, porém, como ele só chegaria de viagem no dia da festa, não poderia participar dos ensaios. Quando ela saiu de perto, ele chorou.

No fim desse ano, a avó morreu e não houve mais Natal em família. Após a primeira ceia na própria casa, ele trancou-se no quarto com uma foto dos dois, crianças, nas mãos. Olhava para o olhar dela.

Na próxima festa de 15 anos de uma prima deles, ela não foi porque tinha prova de vestibular. E no casamento de um tio mais novo, foi ele quem não deu as caras porque era sua calourada na faculdade. Ela mudou-se pra longe para estudar. Quando dava, se falavam pela internet ou num telefonema rápido. E isso fazia muito bem a ele.

Quando ele concluiu o curso de Direito, convidou muita gente da família para a formatura. Talvez fosse a ocasião perfeita para contar à prima o que se passava com ele há tantos anos. Ela foi. E, sem graça, levou o namorado. Talvez tenha sido a pior noite da vida dele, que encheu a cara de uísque e apagou cedo. Para a formatura dela – não em Medicina, mas em alguma Engenharia – ele fingiu ter um compromisso no dia e optou por não ir. Ele se casou com a primeira namorada séria. Logo depois ela também subiu ao altar, com o então chefe. Em silêncio e por muitos anos, ele pensava no olhar dela.

Eles se viram mais algumas vezes, em ocasiões de família, mas com certo distanciamento. Ela teve dois filhos e se separou. Ele se divorciou relativamente rápido, sem nenhum herdeiro. E depois de uns anos sem se falarem, ele passou por uma loja de joias e viu, na vitrine, uma pedra que brilhava muito, exatamente como o olhar da prima. Decidiu que, enfim, era hora de ela saber o que ele sentira durante toda a vida. Seria, sem falta, quando se vissem da próxima vez. Jurou para si ter coragem, pelo amor que nunca deixou acabar.

Só que no próximo reencontro ele estava presente apenas de corpo. Uma enfermidade súbita o tirou a vida de uma hora para outra, ainda novo. Ela, quando soube, ficou muito mal. Triste, fez questão de ir ao velório. Quando o viu pela última vez, depois de muito tempo, seus olhos brilharam de novo.

domingo, 5 de junho de 2011

A extração 2

Continuação de um momento passado, bem dolorido.



Duas semanas após a cirurgia para retirar meu primeiro dente do siso, há longos dois anos e meio, o segundo foi extraído. Eu, mais esperto e experiente, saí do consultório já para a farmácia, encomendei os remédios necessários e me cuidei para não sofrer tanto como da outra vez. Deu certo. O problema é que ainda restavam outros dois terceiros molares, os de baixo, segundo a dentista responsável pelas primeiras extrações, em posições bem mais complicadas de serem retirados.

O tempo passou, eu me mudei de cidade, larguei o emprego, comecei a trabalhar outra vez e deixei de lado a preocupação com os sisos inferiores durante o período. Até que decidi procurar outro dentista para analisar a real necessidade de tirar os dentes, aproveitando que moro com minha família (sei lá, poderia precisar deles) e a empresa tem convênio odontológico.

Do consultório, sou encaminhado a uma clínica de raios-x. Nada agradável as plaquinhas na minha boca empurrando minha língua e me fazendo engasgar. Um dos lados não deu certo e tive que repetir o procedimento. Pronto, agora sim. Levo o resultado de volta ao dentista. Ele analisa, fica sério e em silêncio e depois solta a primeira das más notícias: “Tem uma coisa que eu preciso te falar antes. Seus dentes estão bem deitados e as raízes estão dentro do nervo, que passa por baixo da arcada dentária”. Não parecia legal. Completou me informando que nesse caso tanto o pré quanto o pós-operatório não são simples e que havia chances reais de eu perder a sensibilidade na boca onde estão os dentes, pelo menos por um tempo.

Dia marcado, hora marcada, medicamentos recomendados tomados, lá estou eu na antessala no aguardo da cirurgia. Chego pontualmente às 11h e só sou atendido ao meio-dia. Quando entro na sala, a primeira surpresa: outro dentista acompanharia a extração. Em princípio, não fiz ideia do porquê. Começa a operação. As radiografias afixadas no aparelho de luz da cadeira me mostravam o quão horizontal cada dente estava, o que não me transmitia exatamente muita tranquilidade. Pano na cabeça que deixa só o rosto para fora e anestesia, anestesia, anestesia.

Em seguida eu descobri qual era a função do segundo dentista: segurar o sugador. Mas mais que isso, me manter atento. Ao menor sinal meu de distração, ele descia o aparelho para mais dentro da garganta, tentando me fazer engasgar. Isso umas mil vezes, algumas com sucesso. Quando eu já estava na situação desagradável de ter pelo menos três mãos na minha boca, além de sugador, agulha e uma ponta de metal, o dentista titular pergunta ao colega: “A final da Copa do Brasil é sábado?” Ao que ele responde: “Acho que é sim”. Eu não me contive e intervi: “Hum-hum”, e levantei quatro dedos da mão. “Ah, é quarta?” “Aham”.

Dez minutos mais tarde, a pergunta é para mim: “Você é vascaíno, cara?” Como responder isso com tantas mãos, aparelhos e sangue na boca? Só enfiei a mão no bolso e mostrei meu chaveiro do Corinthians. Saí-me bem. Mudando o assunto, a recomendação foi para que eu não me preocupasse com alguns pequenos estalos que ouviria. Tensão. Alicate na boca e creck, crack, track. Sai um pedaço de dente, outro pedaço, mais outro. Eu nem olho para a mesinha ao lado, onde as partes são depositadas – melhor não ter certeza do que está acontecendo.

O primeiro dente é extraído, em partes, mas é. Antes de começar os procedimentos para o segundo, ouço: “Umm, este está bem dentro do osso. O buraco vai ser grande. Você vai lembrar de mim por uma semana”. Está certo que ele é dentista, não psicólogo, mas, cá entre nós, precisa desse terrorismo? Outra observação: os aparelhos que são colocados na boca dos pacientes não deveriam ter dois lados. Uma ponta cutuca e logo depois a outra precisa ser usada para pressionar, alçando a primeira, empapada de sangue, aos olhos do enfermo. Não é bacana, sério.

Enfim, último dente fora. Com base na primeira trágica experiência, já peço um arsenal de remédios. Defendo que prefiro ficar dopado a sentir aquela dor insuportável. O dentista me garante que vai me passar o remédio mais poderoso. Deve ser mesmo, porque precisei assinar um papel na farmácia com meu nome completo, endereço, documento de identidade e telefone. Por pouco não levantam minha ficha criminal e analisam minhas comunidades no Orkut. Mas o tal medicamento funciona, segurou a onda legal. Fiquei sabendo que é forte mesmo, indicado para pacientes com câncer.

Por fim, em um texto sobre odontologia ele não pode faltar. Fica meu registro de protesto contra o motorzinho e seu barulho assustador. Ele foi usado tantas vezes que uma hora eu achei que o dente não seria mais extraído, mas pulverizado até sumir. Felizmente não nos veremos tão cedo, motor. Pelo menos eu espero.