terça-feira, 13 de março de 2012

Bola metade


Enfim, o Antônio aceitou sair com o pessoal da empresa. Depois de meses sendo convidado para os happy hours e só agradecendo, ele disse que iria à comemoração do aniversário do Couto, na terça-feira, em um bar novo na cidade. Os colegas brincaram que teriam duas festas em uma – a do aniversariante e a presença, inédita, do Antônio. O fato é que, desde que o casamento dele terminara, tornou-se um cara caseiro. Era adverso a festas e badalações. O Couto era mesmo um cara super gente fina e amigo de todo mundo, mas a ida do Antônio ao bar poderia significar, para quem convivia com ele, um princípio de mudança de atitude.

O Antônio casou-se cedo, com uma amiga da faculdade. O matrimônio não deu certo e, aos trinta anos, estava solteiro de novo, mas sem o menor pique. Passou a dedicar todo o seu tempo livre a um único passatempo: assistir futebol na tevê. Na verdade, embora não admitisse, ele era um camisa nove frustrado. Um jovem goleador, campeão de todos os torneios amadores da região, que não teve chance de seguir como profissional por conta de uma lesão no joelho esquerdo durante um teste. Trocou os gramados pela nostalgia, diziam.

Ele sabia de cor a classificação dos campeonatos. E tinha as tabelas na ponta da língua. Assinou canais por assinatura e acompanhava todas as ligas exibidas. Quando não era horário de jogos, Antônio divertia-se assistindo a antigos clássicos pela internet. Fazia pipoca e tudo. Meia dúzia de long necks para as semifinais da Copa de 54. Pizza no forno para a primeira rodada da Copa da Holanda ao vivo. Um pacote grande de Doritos por um bom Ba-Vi.

Agora lá estava o Antônio no bar, em plena terça, com os colegas. O espaço era novo para todo mundo, recém-inaugurado. Eles juntaram algumas mesas, pediram cervejas e uns petiscos. O pessoal se divertia contando casos engraçados com clientes. Papo vai papo vem, o Antônio mirou uma mesa do outro lado do bar, se surpreendeu e fixou o olhar. Nela, uma mulher bonita, atraente, trajada com um belo vestido e com longos cabelos pretos cacheados sobre os ombros. Pernas cruzadas. Sozinha. Ele a observou por alguns segundos. Na certa, esperava por alguém.

A partir de então, Antônio não conseguiu prestar atenção em mais conversa alguma. Todo o bar foi sumariamente ofuscado pela beleza da morena dos cachos. Ainda sozinha. Apenas uma taça de vinho na mesa. Ele percebeu traços de impaciência no comportamento dela. Olhava fixamente para um ponto, fora do campo de visão dele, bloqueado por uma pilastra. Balançava as pernas num ritmo constante de inquietude. Chegou a morder o lábio inferior mais de uma vez. Definitivamente, ela estava tensa.

Os minutos passavam, o papo na mesa já era a última festa da empresa e o Antônio estava cada vez mais longe do assunto e do cotidiano corporativo. A mulher continuava só, com o corpo inerte e a face voltada a um canto do bar onde impiedosamente o olhar dele não alcançava. Curiosidade fatal. Ele teve a impressão de tê-la visto balbuciar, baixinho, um palavrão. E, estranhamente, assim ela pareceu ainda mais charmosa.

De súbito, a bela se levantou. Como quem tinha a plena certeza de que aquela era a hora de partir. Pagou a conta no caixa e deixou o bar, sem perceber qualquer outro freguês, mas a tempo de passar ao lado da mesa de Antônio e permitir que ele sentisse seu leve perfume. O rapaz não resistiu, foi até a mesa em que ela estava para conferir o que a mulher mirava com tamanho interesse. Surpreso, riu para ele mesmo. Uma televisão exibia uma tela dividida entre um repórter entrevistando um jogador de futebol ainda no campo após uma partida imediatamente terminada e a classificação da Série B do Brasileirão. Ela era só uma torcedora apaixonada. E talvez ele tivesse encontrado sua alma gêmea.

No sábado teria jogo de novo. E ele estaria lá outra vez.

quarta-feira, 7 de março de 2012

O homem e os ratos

Eu sempre gostei de animais. Sempre mesmo, desde que me entendo por gente. Até cogitei cursar Veterinária, mas desisti logo quando me toquei que me dava muito melhor com o Português do que com a Biologia. E sempre gostei de ter animais. Lembro-me com detalhes de como foram meus primeiros encontros com os cachorros que tive: o Rex, o Ringo, a Paquita e o Nick – os dois últimos meus mesmo, não da minha família.

As adversidades sociais modernas me impedem de ter outro cão. Morar em apartamento e não saber onde vou estar num prazo médio são fatores cruciais aqui. Já há alguns anos, então, contorno a situação criando roedores. Viajo nos ratinhos, me faz bem observá-los.

Eu sempre gostei de dormir. Sempre mesmo, desde que me entendo por gente. Era o último a levantar e o campeão de horas seguidas de sono. Até hoje, aos finais de semana, dependendo da madrugada anterior, só vejo a luz do sol na tarde seguinte quando ela quase não existe mais.

Nunca fui de sonhar muito. Pelo menos, não que eu me lembre. Nem de ter sonhos proféticos ou esquisitos. Mas algo tem me chamado a atenção: de um tempo pra cá tenho sonhado, costumeiramente, com, vejam só, roedores!

Talvez seja porque os bichinhos estão na minha vida não é de hoje. O primeiro foi o Rock, quando eu estava na sexta série. Comprei o hamster – desses comuns, amarelinho – numa loja em frente à escola e o levei pra casa numa caixa de papel, sem me preocupar que ele precisaria de um lugar para morar. O jeito foi descolar um caixote. Só que o Rock aprendeu a escalar a madeira e fugir. E eu o procurava pela casa meio desesperado, até que descobri onde era o esconderijo do bicho: embaixo da geladeira. Então, eu guardava o rato outra vez no caixote, ele fugia daí a pouco e eu o pegava embaixo da geladeira. Sucessivamente. Uma hora saí com a minha família e, quando voltamos, ele não estava nem na caixa e nem na cozinha. Fui encontrá-lo no outro dia embaixo do pneu de um carro em frente à minha casa, todo amassado e rodeado por insetos. E eu morava no segundo andar! Triste cena. Pelos meus cálculos, ele foi meu por dois dias. Deixou algumas lembranças, como quando urinou na minha mão e minha mãe ficou gritando que xixi de rato passava doença.

A segunda da lista foi a Maria, uma gerbil (ou esquilo da Mongólia). Eu nem imaginava que existisse essa espécie, até que, já durante a faculdade, entrei em uma loja de pets e a vi. Resultado: comprei-a, em parceria com meus companheiros de república, e ela virou mascote da casa e xodó da turma. Certa vez, conheci um cara que criava gerbils (imagino que seja esse o plural) e ele me ofereceu uma ratinha filhote para fazer companhia à Maria. Aceitei. Mas antes que a roedorazinha conhecesse sua futura amiga, a Maria se foi. Morreu quando uma escada, dessas móveis, caiu sobre ela, na noite de Natal. Acredito que tenha sido a vez que eu mais chorei na vida. Às lágrimas, velei a pobre em uma caixinha de pasta de dente e a enterrei num canteiro na garagem do prédio. Com uma cruz por cima.


Entrei em contato com o rapaz que me daria a outra esquila e contei do falecimento. Ele me ofereceu então duas roedoras. E, assim, entravam na minha vida a Lisa e a Maggie. Com nomes inspirados nas filhas de Homer Simpson, elas tornaram-se as novas mascotes da república e estiveram comigo até que eu me formasse. Depois, me mudei para longe e elas foram herdadas pela minha família. As duas irmãs se foram – dessa vez, de forma natural, sem desgraças. A Lisa morreu primeiro e a Maggie, já velhinha e debilitada, foi ao céu dos esquilos encontrar-se com a irmã.



Vieram alguns anos sem bichos. Mas não me desfiz da estrutura de criação, principalmente do aquário onde os roedores moravam. Até que recebi um presente: Zé e Superman – dois hamsters chineses assim batizados pelo meu priminho, então com cinco anos e dono dos pais dos ratinhos. A verdade é que eu nunca soube quem era quem porque eles eram absolutamente iguais. Um deles já passou dessa para melhor, mas o outro, que convencionei ser o Zé, está esbanjando saúde, cochilando durante o dia e correndo na rodinha à noite.

Talvez pela variedade de espécies e personalidades dos roedores com quem convivi, meu cérebro insista em me fazer sonhar com os bichos. Só que não são sonhos bons. O roteiro é mais ou menos o mesmo: eu perco o ratinho, como acontecia com o Rock, e, tenso, custo a localizá-lo. Aí percebo que não tenho só um roedor, mas muitos! São gaiolas e aquários, de todas as formas e tamanhos, completamente cheios. Nessa hora me sinto muito mal porque não consigo me lembrar desde quando tenho tantos animais e nem há quanto tempo não os alimento. E ainda me aflige a ideia de que há machos e fêmeas juntos e que, em questão de instantes, eles se reproduzirão incessantemente e a casa será tomada por roedores. Então, me aparece, de supetão, o Cazuza, todo despenteado e bebasso, cantando alto no meu ouvido “a tua piscina tá cheia de ratos, tuas ideias não correspondem aos fatos”. Tá, essa parte é mentira. Só escrevi pra eu ver como poderia ser pior.

Vez por outra ainda acontecem coisas inexplicáveis, como quando, em um dos sonhos, eu criava ratos em um aquário, só que com água. E eles viviam de boa, nadando como se tudo estivesse nos padrões da Mãe Natureza. E no último sonho que tive, em uma das gaiolas próxima às dos roedores, eu criava pedaços de torresmo fritos.

O mais interessante dos sonhos são as gaiolas que descubro que tenho. Costumam ser grandes, com vários andares, rampas e túneis. Coisas de outro mundo. Certa vez, uma tinha três andares, estrutura de vidro envolta por madeira nas laterais e um sistema sensacional de iluminação interna. Tá aí, acho que eu deveria ser contratado por designers de gaiolas e me deixarem dormindo, até eu ter um sonho desses e descrever as residências que vejo para que eles as criem no mundo real. Estou sendo desperdiçado.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Os jornais


O firmamento já estava praticamente tomado pela escuridão da noite quando ele chegava em casa. Os sapatos pareciam bigornas atadas aos pés e o andar era arrastado e lento. Os ombros pesavam e sua postura era a de um homem esgotado. O cansaço psicológico refletia no corpo. Paletó em uma das mãos, gravata e camisa afrouxadas. Há alguns meses, o trabalho o consumia e a pressão pela entrega de resultados transformou-se em uma bomba-relógio prestes a minar o resto de sua saúde. Vivia a tensão de perder o cargo de direção na empresa. A maleta nas mãos carregava documentos e relatórios que poderiam mudar sua vida para sempre. Mas quando avistava sua casa, algumas dezenas de metros à frente, sorria por um instante. Sabia que lá alguém o esperava cheio de expectativas.

Ouviu, de dentro, um grito por ele. Mal havia terminado de girar a chave na fechadura para abrir a porta, foi recebido com a maior empolgação do mundo. Ao ponto de desequilibrar-se e ter que se segurar para não cair. Era assim, todos os dias. O retorno ao lar afastava de sua mente as preocupações e qualquer pensamento ruim e ele sentia-se especial. Enquanto deixava a maleta sobre a mesa da sala e o paletó sobre uma cadeira qualquer, recebia longas e afáveis lambidas nas mãos. O cão oferecia a ele um universo de sossego e distração em troca apenas de alguns simples cafunés.

Desde que a família reduzira-se apenas aos dois, quando a dona da casa fora vencida por uma enfermidade, tornaram-se melhores amigos. O cachorro era dela, mas homem e animal viram-se sozinhos no mesmo espaço e decidiram dar uma chance um ao outro. Entenderam-se, após anos de convívio distante. Apaixonaram-se. Agora não se separavam mais.

O humano não precisava mais de despertador. Todos os dias, pontualmente, às 6h, era acordado com uma lambida nos pés. Um afago no bicho e ia ao banho, enquanto o animal corria ao jardim para buscar o jornal. O dono lia as notícias durante o café, enquanto o cão comia seus biscoitos ao pé da mesa. Depois, era hora da caminhada pelo bairro. Sem a necessidade de coleira. Eles mantinham-se próximos porque queriam. Alguns minutos de descanso na praça, um carinho e era tempo de partir ou se atrasariam. Um deles precisava trabalhar.

No início da noite, após o massacrante expediente, outra volta pelo bairro. Para o animal, oportunidade para exercitar-se, praticar o latido no duelo verbal com outros cachorros e, quem sabe, descolar uma namorada. Para o humano, hora de esquecer toda a complexidade da sociedade e do mundo corporativo. Após a caminhada, jantavam juntos e tiravam um cochilo no sofá vendo qualquer coisa na TV.

Novo dia, mesma rotina: despertador de língua, banho, jornal no café, passeio pelo bairro. Trabalho. Volta pra casa, festa, passeio pelo bairro, jantar, sofá.

Numa madrugada como qualquer outra, um deles passou mal, com uma forte dor no peito. O outro soube que o próximo dia não seria de festa. Sentiu que não viria notícia boa. Descobriram uma doença. Em questão de semanas, ele piorou. Mantiveram-se um ao lado do outro todo o tempo. Um esperava à porta do consultório enquanto o outro fazia exames. Estava por perto na hora dos remédios. Diminuíram o ritmo do passo nas caminhadas. Um ensinou o outro a ser mais humano e o outro lhe ensinou a ser menos animal. Tentaram manter a doce e consagrada rotina por quanto tempo fosse possível.

Embora não admitissem, sabiam que a parceria estava prestes a terminar. E acabou numa manhã fresca de sábado. A saúde cedeu, a bomba-relógio explodiu. Em silêncio, ele tocou o corpo inerte do amigo e aguardou ao seu lado o socorro, que chegou tarde demais. Saiu de maca e cheio de tubos e eles nunca mais se viram. Mas os jornais continuam a ser entregues, infalivelmente, todas as manhãs.







Inspirado nessa charge, que desconheço a autoria (além da assinatura meio ilegível). E em todo o sentido que carrega a palavra lealdade.