quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O último dia


Já sentiu a sensação de ter a consciência pesada sem saber exatamente por quê? É assim que eu me sinto agora. Hoje tudo está diferente, tudo mudou.

Desde que eu estabeleci minha rotina, os dias vinham sendo exatamente iguais. Até ontem.

Eu sei que por eu ser um cão de rua, nem todo mundo gosta de mim. Já gritaram comigo, me xingaram alto sem eu ter feito nada e um cara uma vez me jogou um chinelo velho. Normal, é a sina dos cachorros vadios. Mas eu tenho amigos, muitos! Pelo menos jurava que tinha.

Acho que já fiz dois ou três meses de vida. Não tenho a menor ideia de quem possa ser meu pai e da minha mãe não me lembro mais. Eu ainda era muito filhote a última vez em que a vi. Ela sumiu. Recordo-me de ter irmãos, um monte, mas nem sei ao certo quantos somos.

Desde que me dei conta de que estava sozinho no mundo, dei meu jeito de sobreviver. Bebia água em poças, comia restinhos de lanches. Sou esperto, acho que devo ter algum antepassado cão de caça. Aliás, nem sei se tenho raça. Gosto de pensar que meu pai é um cachorro de caça e minha mãe descende dos pastores. Eu poderia ter um avô daqueles cães magrelinhos, que correm muito. E uma avó dessas que parecem um bichinho de pelúcia. A verdade é que eu não passo de um vira-lata. Sozinho.

Minha vida mudou o dia em que eu, andando sem rumo, parei em frente a esta faculdade. O tanto de gente me deixou com um pouco com medo. Mas fui muito bem recebido. Ganhei comida e até uns cafunés. Desde então, venho aqui todos os dias nesse horário e me tratam como um rei. Já comi biscoito Passatempo, Fandangos, pedaço de torta de frango com catupiry (essa eu adoro) e até picolé de limão. Um dia me deram um banho, na hora eu não gostei, mas o cheirinho bom fez sucesso. Tenho vários nomes. Cada turma me deu uma alcunha diferente. Eu nem ligo, adoro todos meus amigos.

Aos sábados, o movimento diminui. Mas sempre vem alguém trocar uma ideia comigo, jogar alguma coisa pra eu pegar e trazer de volta em troca de um afago e uns bicoitinhos. Domingo eu não venho, fico na praça em frente à igreja. E nas segundas, abano o rabo de felicidade quando reencontro a moçada.

Enquanto lembro-me disso tudo, olho para todos os lados procurando meus amigos e o que vejo é só o vazio. Está na hora em que nos vemos todos os dias. Mas hoje não veio ninguém. Acho que não gostam mais de mim. Eu devo ter feito alguma coisa que magoou a todos eles. Juro que não sei o quê. Será eles me acham pidão demais? Será que arrumaram outro vira-lata de estimação? Será que eu lambi alguém onde não devia e eles combinaram de não falar mais comigo?

Vou embora. Pra sempre. De cabeça baixa. Gostava de verdade daqui. Desculpem-me qualquer coisa.



Minutos depois o grande portão de metal foi aberto e uma multidão de jovens de mochilas saiu do prédio. Estranharam a ausência do cachorrinho. Procuraram pelas ruas do bairro. Questionaram-se o que poderia ter acontecido a ele. Pensaram no pior e fizeram um enterro simbólico do pacote de ração que haviam comprado para o cão por meio de uma vaquinha e seria entregue hoje. Nunca mais o viram. E ele jamais entenderia o que é o horário de verão.


Inspirado em uma foto de um cão vadio na UFV postada por Régis André no Twitter.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Crônica bancária 4


- Boa tarde. Em que eu posso te ajudar?

- Quero abrir uma conta.

- Você trouxe todos os documentos? Identidade, CPF, comprovante de residência.

- Sim. Eu já tinha até vindo outro dia, mas não deu pra abrir porque a conta de luz não tava no meu nome.

- Quando é assim, precisa de uma declaração da pessoa de que você mora neste endereço.

- Hoje eu trouxe; meu marido fez pra mim.

Abre uma folha de caderno com linhas vermelhas dobrada em quatro e entrega. Uma frase escrita com letra garranchosa.

“Eu, Rogério, declaro que a conta de luz está em meu nome”.

Ah bom, agora sim...

domingo, 3 de outubro de 2010

O mesmo lugar


Faz parte da vida de todo estudante de graduação almoçar no Restaurante Universitário da instituição dele, nem que seja quando a remessa de dinheiro vinda dos pais diminui, nem que seja por um único dia, nem que seja só para depois falar mal da comida. Mas não foi assim com aquele grupo de então jovens graduandos da Universidade Federal de Viçosa – durante quatro anos eles se reuniram sagrada e alegremente no mesmo local para realizar suas refeições. Duas vezes por dia.

O almoço não era lá o melhor manjar que se poderia oferecer aos deuses greco-romanos. Também é certo que o arroz e o feijão não carregavam um tempero digno da cozinha de Dona Benta e Tia Anastácia. Os vegetais, às vezes, não tinham qualquer cor. Ou gosto. Mas, verdade seja dita, de uma maneira geral, a refeição era de bom gosto e supria satisfatoriamente as necessidades calóricas de um jovem em fase final de crescimento vertical e princípio de crescimento horizontal.


O jantar, esse sim merece elogios. Pães, frutas, suco e doce ornamentavam e envolviam o recipiente do bandejão que receberia a deliciosa e nutritiva sopa do fim da tarde. Ao longe, o odor agradável tratava de abrir o apetite e preparar o estômago para receber o divino caldo de legumes, batatas, lentilhas, canjiquinha ou, às sextas-feiras, o que sobrara do almoço da semana.

Nos dois horários, as refeições sempre tinham algo especial em comum. Além do grupo de amigos e das boas histórias e risadas, o mesmo lugar: a mesma mesa. Na UFV, o RU é dividido em dois. O da esquerda é todo fechado por paredes de concreto, o que cria certo clima de opressão e, por isso, deveria ser evitado a qualquer custo. O da direita não, é todo de vidro. Sua opacidade permite, enquanto a refeição é consumida, a contemplação do canto dos pássaros nas árvores, cachorrinhos na calçada suplicando parte do frango, o lento passar daquela paquera do outro período. E no RU da direita, os estudantes se encontravam, invariavelmente, na mesa ao lado das duas quinas de paredes de vidro.

Caso um deles fosse comer sozinho, o ritual já estaria traçado: entrar, pegar a bandeja e caminhar até a mesa, transpassando toda a diagonal do restaurante. Se outro do grupo estivesse no restaurante, já haveria de ter tomado o ponto de encontro, no aguardo dos demais. E dos demais, que certamente ainda viriam. Era a mesa mais longe da roleta de entrada, mais longe de onde se servia a comida. Aparentemente não havia razão para tamanha predileção. Aparentemente. A mesa era mais perto dos pássaros, das árvores, dos cães. De fazer com que aquele almoço em família – a família que a gente escolhe – fosse mais do que a hora de comer. O momento de reforçar, cada dia mais, a amizade firmada. Quatro anos.

Depois de formados, a mesa continuou sendo utilizada pelas gerações mais jovens daquela turma. E, aos antigos, receber uma mensagem no celular ao meio-dia revelando que um deles ainda almoçava na mesa era motivo de orgulho. A tradição fora passada adiante. Em caso de uma rápida visita a Viçosa, o RU tinha que ser revisto. Mais um almoço, naquela mesa. Mesa do vidro. A própria mesa.

Se algum dia alguém daquele grupo virar pirata e precisar esconder um tesouro embaixo de alguma coisa, acho que sei onde encontrar.