quinta-feira, 1 de março de 2012

Os jornais


O firmamento já estava praticamente tomado pela escuridão da noite quando ele chegava em casa. Os sapatos pareciam bigornas atadas aos pés e o andar era arrastado e lento. Os ombros pesavam e sua postura era a de um homem esgotado. O cansaço psicológico refletia no corpo. Paletó em uma das mãos, gravata e camisa afrouxadas. Há alguns meses, o trabalho o consumia e a pressão pela entrega de resultados transformou-se em uma bomba-relógio prestes a minar o resto de sua saúde. Vivia a tensão de perder o cargo de direção na empresa. A maleta nas mãos carregava documentos e relatórios que poderiam mudar sua vida para sempre. Mas quando avistava sua casa, algumas dezenas de metros à frente, sorria por um instante. Sabia que lá alguém o esperava cheio de expectativas.

Ouviu, de dentro, um grito por ele. Mal havia terminado de girar a chave na fechadura para abrir a porta, foi recebido com a maior empolgação do mundo. Ao ponto de desequilibrar-se e ter que se segurar para não cair. Era assim, todos os dias. O retorno ao lar afastava de sua mente as preocupações e qualquer pensamento ruim e ele sentia-se especial. Enquanto deixava a maleta sobre a mesa da sala e o paletó sobre uma cadeira qualquer, recebia longas e afáveis lambidas nas mãos. O cão oferecia a ele um universo de sossego e distração em troca apenas de alguns simples cafunés.

Desde que a família reduzira-se apenas aos dois, quando a dona da casa fora vencida por uma enfermidade, tornaram-se melhores amigos. O cachorro era dela, mas homem e animal viram-se sozinhos no mesmo espaço e decidiram dar uma chance um ao outro. Entenderam-se, após anos de convívio distante. Apaixonaram-se. Agora não se separavam mais.

O humano não precisava mais de despertador. Todos os dias, pontualmente, às 6h, era acordado com uma lambida nos pés. Um afago no bicho e ia ao banho, enquanto o animal corria ao jardim para buscar o jornal. O dono lia as notícias durante o café, enquanto o cão comia seus biscoitos ao pé da mesa. Depois, era hora da caminhada pelo bairro. Sem a necessidade de coleira. Eles mantinham-se próximos porque queriam. Alguns minutos de descanso na praça, um carinho e era tempo de partir ou se atrasariam. Um deles precisava trabalhar.

No início da noite, após o massacrante expediente, outra volta pelo bairro. Para o animal, oportunidade para exercitar-se, praticar o latido no duelo verbal com outros cachorros e, quem sabe, descolar uma namorada. Para o humano, hora de esquecer toda a complexidade da sociedade e do mundo corporativo. Após a caminhada, jantavam juntos e tiravam um cochilo no sofá vendo qualquer coisa na TV.

Novo dia, mesma rotina: despertador de língua, banho, jornal no café, passeio pelo bairro. Trabalho. Volta pra casa, festa, passeio pelo bairro, jantar, sofá.

Numa madrugada como qualquer outra, um deles passou mal, com uma forte dor no peito. O outro soube que o próximo dia não seria de festa. Sentiu que não viria notícia boa. Descobriram uma doença. Em questão de semanas, ele piorou. Mantiveram-se um ao lado do outro todo o tempo. Um esperava à porta do consultório enquanto o outro fazia exames. Estava por perto na hora dos remédios. Diminuíram o ritmo do passo nas caminhadas. Um ensinou o outro a ser mais humano e o outro lhe ensinou a ser menos animal. Tentaram manter a doce e consagrada rotina por quanto tempo fosse possível.

Embora não admitissem, sabiam que a parceria estava prestes a terminar. E acabou numa manhã fresca de sábado. A saúde cedeu, a bomba-relógio explodiu. Em silêncio, ele tocou o corpo inerte do amigo e aguardou ao seu lado o socorro, que chegou tarde demais. Saiu de maca e cheio de tubos e eles nunca mais se viram. Mas os jornais continuam a ser entregues, infalivelmente, todas as manhãs.







Inspirado nessa charge, que desconheço a autoria (além da assinatura meio ilegível). E em todo o sentido que carrega a palavra lealdade.

5 comentários:

Iara disse...

Ah.. Que lindo!
Só aumentou minha vontade de ter um cachorro! =]

Ana Paula disse...

Chorei!

Cláudia Cavalcanti disse...

A amizade que nada pede em troca, senão um passeio, um afago, a nossa presença. Às vezes, prefiro os cães aos humanos. Sua história explica o motivo dessa minha ocasional preferência. Lindo o que escreveu, parabéns ( de novo!).

ThiagoFC disse...

Bacana. Tipo um "Marley e Eu", só que do avesso.

Anônimo disse...

Na atual conjuntura, de inversão de valores, seres humanos cada vez mais se assemelham a animais, espero que ao menos eles possam se inspirar na história do cachorro.