sábado, 31 de agosto de 2013

Dose real


Quando parou, conseguiu tirar um minuto para ele, já era fim da sexta-feira. A semana tinha sido foda. Pior: a sensação era de que nada tinha rendido, faltavam um milhão de coisas a fazer. Exausto, com o peso da vida sobre os ombros, se sentou à velha mesa da cozinha, iluminada por filetes de luzes frias do poste da rua que escapavam pelo canto da janela. Sabia que precisava descansar, no sábado cedo tinha mais trabalho. Acordaria junto com o Sol.

Depois de um instante fitando o nada, acendeu um cigarro. Parecia a única alternativa a tudo. A cada tragada, sem qualquer pressa, era como se penosamente trouxesse ainda mais problemas para dentro de si. Mas soltava a fumaça como se se livrasse de todos eles de uma vez. Num ciclo infinito. Caminhou até a estante.

Ainda tinha um resto de uma velha aguardente. Serviu-se de uma dose, se sentou de novo, sem qualquer indício de humor, talvez perdido na rotina pra sempre. Deu mais uma tragada no cigarro e, sob a visão turva de uma fumaça cinza expelida por ele próprio, virou o copo de uma vez. Cachaça forte, desceu seca. Do jeito que ele queria.

Pensou nas contas. Contas pra caralho. Outra vez, teria que escolher alguma para ficar para o próximo mês. No fundo, sabia que em 30 dias também não conseguiria quitar todas. Já estava puto com isso.

Mais um trago lento. Mais uma dose cheia.

Pensou no chefe. Filho da puta. Uma exigência atrás da outra, com prazos cada vez menores para apresentar os resultados. Claro que não daria tempo. Se não precisasse tanto do emprego, já teria dado uma porrada no infeliz há muito tempo. Mas isso também não resolveria nada. Puxou a nicotina, precisava da fumaça. Apagou o cigarro em um cinzeiro improvisado numa tampa de garrafa esquecida na mesa. Encheu o copo de pinga.

Bebeu mais cachaça. Acendeu um fósforo e outro cigarro.

Pensou na ex-mulher. Estava demorando, sempre pensava nela. Foi embora e levou boa parte do que ele tinha. Fodam-se os bens, ela levou um pedaço dele com ela. Nunca mais a viu e, se os boatos que falavam dela eram verdade, preferiria não ver mesmo. Ele era um otário. Deu um trago. Soltou a fumaça vagarosamente e ela se misturou com o álcool exalado no ambiente compondo um cenário mínimo de caos. Permitiu-se um suspiro. Depois, se serviu de mais uma dose, maior. Virou a bebida, sem qualquer cerimônia.

Agora sim, enfim, não pensou em porra nenhuma.

3 comentários:

Cláudia Cavalcanti disse...

Todo mundo tem seu momento down, baixo astral, de puro e simples saco cheio. Assim aconteceu com seu personagem. Até senti o gosto ardido da cachaça, bem descrito por você. Espero que tenha uma continuidade, que ele se tranquilize e consiga sair dessa imensa fossa onde se meteu.

Um beijo

ThiagoFC disse...

"Há dias em que a noite é foda".

Mais uma dose? É claro que eu tô afim (ou "a fim"? E nem tô bêbado agora...)!

Matheus Espíndola disse...

Casinho simples, preciso, chulo, envolvente e cômico. Ou seja, bom pacaraio.

Mas num entra nessa de cachaça não, mano... isso faz mal.