sábado, 24 de agosto de 2013

Pacto de sangue

- Oi. Psiu! Ei! Acorda, cara. Oi! Acoorda!

Ele abriu lentamente os olhos e os esfregou com as costas das mãos enquanto tentava sentar-se. A noite tinha sido péssima, quase não dormira. A cortina estava fechada e a escuridão ainda abraçava o ambiente. No quarto, além dele, só o Bozó com as patinhas dianteiras sobre a cama e a cara de coitado, como sempre fazia.

- Acordou?

- Aaaaaaaaaaaah!

O grito saiu tão forte que ele recuou até suas costas encostarem-se à cabeceira da cama e o pequeno vira-latas adotado há pouco tempo correu desesperado para fora do quarto em disparada. Sim, ele ouvira uma voz doce e infantil, ao que parecia pertencente ao cachorro.

Passado o susto, saiu, devagar e incrédulo, à procura do Bozó. O cãozinho estava escondido debaixo da mesa da cozinha. Ele o chamou e outra vez ouviu palavras no seu idioma. Estava confirmado: agora ele fazia parte de um seleto grupo de seres humanos que, como São Francisco de Assis, Doutor Dolittle e Salsicha, conseguia se comunicar diretamente com animais de outras espécies.

Explicado o mal entendido ao Bozó, que o perdoou pelo grito e ainda deu três lambidas em sua mão direita, ele preparou um café. Estava exausto, não vinha conseguindo ter uma noite de sono completa há meses. As olheiras evidenciavam como dormia mal. Da varanda, chegou uma bela voz afinada cantando um antigo samba triste de Noel Rosa, o Último Desejo. Era do seu canário, que, melancolicamente, oferecia a ele o mais belo espetáculo musical que já ouvira. Após alguns minutos de contemplação, abriu a porta da gaiola e deixou que o pássaro decidisse o momento certo de ganhar sua liberdade.

As surpresas estavam só começando. Conversou com um conhecido gato de rua e descobriu que a barulhada que ele fazia vinha de suas dores de estômago, o felino sofria de algo como uma úlcera. Sentiu pena. Ouviu o casal de jabutis do vizinho se acasalando e ficou envergonhado com o baixo calão das palavras que proferiam. Vivendo e aprendendo. Ouviu do seu peixe beta que o aquário era pequeno demais, a comida era ruim e que ele estava com saudades de ouvir Ramones. Pois é, o Nino era um peixe punk.

Essa situação maluca, no entanto, talvez fosse a saída para o seu sono acumulado. Agendou uma reunião com seus piores inimigos para o meio da tarde, na mesa da sala. Não que ele tivesse insônia, não que trabalhasse tanto assim ou tivesse preocupações tão diferentes das da maioria das pessoas. Era o zumbido irritante dos pernilongos em volta dos seus ouvidos que o impedia de repousar o sono dos justos. Já havia tentando inseticidas em spray e dispositivos ligados à energia elétrica, mas nada dava fim aos magrelos insetos voadores sugadores de sangue que pareciam possuir pequenos motores propagadores de zumbido em suas frágeis estruturas corporais.

A conversa foi tensa, eles se agrediram verbalmente em alguns momentos. Ele tentou exterminar os inimigos à base de tapas por duas ou três vezes, mas se conteve. Precisava aproveitar a oportunidade. E o combinado ficou assim: os pernilongos se esconderiam durante o dia atrás do guarda-roupa e não seriam incomodados. À noite, voariam no mais absoluto silêncio, sem nunca passar próximo aos seus ouvidos. Em troca, ele deixaria sempre parte de um pé para fora da coberta, sem meia. 

Coçava, às vezes doía e ele acordava cheio de pontinhos vermelhos no pé. Mas passou a dormir por horas seguidas e se tornou muito mais disposto, sua vida virou outra. Nunca fora muito bom de negociação mesmo, saiu até no lucro.

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