quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O meu urso

Imaginemos que é aniversário de um menino e é preciso comprar um presente pra ele. Mas não pensemos em uma criança da modernidade, que naturalmente esperaria por algo eletrônico, como um videogame ou até um tablet. Voltemos quase três décadas no tempo.

Como é um menino, é natural que ganhasse um carrinho ou uma bola. Um boneco de herói, quem sabe. Talvez os menos politicamente corretos o presenteassem com uma espada ou uma arminha. O aniversariante é bem novo, então pode ser um bichinho de pelúcia. Um ursinho! Que tal um com a cabeça cor-de-rosa, focinho branco e narinas rosa, corpo alaranjado, uma orelha verde e outra amarela, uma mão amarela e outra verde (em lados apostos aos da orelha) e um roxo e outro amarelo?

Essa decisão, aparentemente sem a menor sensatez, foi tomada por uma tia minha pouco antes do meu primeiro aniversário. O que ninguém imaginaria é a forma como eu me apegaria àquele estranho ser multicolorido. E ele a mim. O ursinho era o Ursolino, provavelmente batizado pelo meu pai (é a cara dele essa criatividade), inspirado no nome de um personagem de desenho animado que também passava no horário do Pica-Pau.


Enquanto eu descobria o mundo, ele me acompanhava. Quem me conheceu nos já longínquos primeiros anos da minha infância, se acostumou a me ver agarrado ao meu ursinho. Nós nos tornamos inseparáveis. O Ursolino foi meu primeiro, e talvez maior, parceiro de aventuras.


Aos poucos, a pelúcia foi deixando de ser um brinquedo para ser um companheiro natural. Minha irmã nem era nascida e já era dele que eu cuidava.


O Ben 10 da minha época é o He-Man. Meu irmão tinha um castelo de Grayskull que fazia o maior sucesso entre nossos amigos. Tínhamos bonecos de todos os personagens e, para que a gente não brigasse, nós dois tínhamos o do He-Man. Os dois, e boa parte da molecada, tinham espadas, mas acho que só eu no mundo era dono de um urso debaixo do braço que podia ser transformado no Gato Guerreiro.


Eu precisava me alimentar. Tinha até uma mesinha de criança. Nela, almoçávamos eu, meu irmão e, claro, o Ursolino.


Eu cresci. Com o tempo, nós nos separamos e o ursinho acabou indo morar em alguma gaveta com outros brinquedos. No princípio da nossa adolescência, não nos víamos muito, mas eu ainda guardava um carinho grande por ele. Era como um velho amigo.

Até que um dia eu ganhei uma cadelinha, a Paquita. Uma cocker spaniel preta, linda. Fiquei apaixonado com a filhotinha. Ela era muito nova e, à noite, chorava muito. Recorri à gaveta e apresentei o Ursolino a ela; pensei que eles pudessem ser amigos e ele fazer a ela parte do bem que me fez quando eu era um filhote. Mas os instintos da cadela falaram mais alto e, na madrugada, ela o assassinou, com um furo no pescoço, de onde retirou todo o algodão que o preenchia. Acabava ali uma história de longos anos de amizade entre mim e um urso de pelúcia colorido. O meu urso.

O Ursolino se transformou em uma lembrança da infância. Talvez a melhor delas, a que representa o que de mais puro eu vivi. Onde quer que você esteja, velho companheiro, saiba que você sempre será inesquecível. E que a vida de gente grande seria muito melhor se eu ainda pudesse te carregar debaixo do meu braço de vez em quando.

Que no céu das pelúcias você tenha encontrado amigos como nós fomos. E que esteja descansando em paz como a gente fazia no fim de uma tarde de aventuras.

sábado, 31 de agosto de 2013

Dose real


Quando parou, conseguiu tirar um minuto para ele, já era fim da sexta-feira. A semana tinha sido foda. Pior: a sensação era de que nada tinha rendido, faltavam um milhão de coisas a fazer. Exausto, com o peso da vida sobre os ombros, se sentou à velha mesa da cozinha, iluminada por filetes de luzes frias do poste da rua que escapavam pelo canto da janela. Sabia que precisava descansar, no sábado cedo tinha mais trabalho. Acordaria junto com o Sol.

Depois de um instante fitando o nada, acendeu um cigarro. Parecia a única alternativa a tudo. A cada tragada, sem qualquer pressa, era como se penosamente trouxesse ainda mais problemas para dentro de si. Mas soltava a fumaça como se se livrasse de todos eles de uma vez. Num ciclo infinito. Caminhou até a estante.

Ainda tinha um resto de uma velha aguardente. Serviu-se de uma dose, se sentou de novo, sem qualquer indício de humor, talvez perdido na rotina pra sempre. Deu mais uma tragada no cigarro e, sob a visão turva de uma fumaça cinza expelida por ele próprio, virou o copo de uma vez. Cachaça forte, desceu seca. Do jeito que ele queria.

Pensou nas contas. Contas pra caralho. Outra vez, teria que escolher alguma para ficar para o próximo mês. No fundo, sabia que em 30 dias também não conseguiria quitar todas. Já estava puto com isso.

Mais um trago lento. Mais uma dose cheia.

Pensou no chefe. Filho da puta. Uma exigência atrás da outra, com prazos cada vez menores para apresentar os resultados. Claro que não daria tempo. Se não precisasse tanto do emprego, já teria dado uma porrada no infeliz há muito tempo. Mas isso também não resolveria nada. Puxou a nicotina, precisava da fumaça. Apagou o cigarro em um cinzeiro improvisado numa tampa de garrafa esquecida na mesa. Encheu o copo de pinga.

Bebeu mais cachaça. Acendeu um fósforo e outro cigarro.

Pensou na ex-mulher. Estava demorando, sempre pensava nela. Foi embora e levou boa parte do que ele tinha. Fodam-se os bens, ela levou um pedaço dele com ela. Nunca mais a viu e, se os boatos que falavam dela eram verdade, preferiria não ver mesmo. Ele era um otário. Deu um trago. Soltou a fumaça vagarosamente e ela se misturou com o álcool exalado no ambiente compondo um cenário mínimo de caos. Permitiu-se um suspiro. Depois, se serviu de mais uma dose, maior. Virou a bebida, sem qualquer cerimônia.

Agora sim, enfim, não pensou em porra nenhuma.

sábado, 24 de agosto de 2013

Pacto de sangue

- Oi. Psiu! Ei! Acorda, cara. Oi! Acoorda!

Ele abriu lentamente os olhos e os esfregou com as costas das mãos enquanto tentava sentar-se. A noite tinha sido péssima, quase não dormira. A cortina estava fechada e a escuridão ainda abraçava o ambiente. No quarto, além dele, só o Bozó com as patinhas dianteiras sobre a cama e a cara de coitado, como sempre fazia.

- Acordou?

- Aaaaaaaaaaaah!

O grito saiu tão forte que ele recuou até suas costas encostarem-se à cabeceira da cama e o pequeno vira-latas adotado há pouco tempo correu desesperado para fora do quarto em disparada. Sim, ele ouvira uma voz doce e infantil, ao que parecia pertencente ao cachorro.

Passado o susto, saiu, devagar e incrédulo, à procura do Bozó. O cãozinho estava escondido debaixo da mesa da cozinha. Ele o chamou e outra vez ouviu palavras no seu idioma. Estava confirmado: agora ele fazia parte de um seleto grupo de seres humanos que, como São Francisco de Assis, Doutor Dolittle e Salsicha, conseguia se comunicar diretamente com animais de outras espécies.

Explicado o mal entendido ao Bozó, que o perdoou pelo grito e ainda deu três lambidas em sua mão direita, ele preparou um café. Estava exausto, não vinha conseguindo ter uma noite de sono completa há meses. As olheiras evidenciavam como dormia mal. Da varanda, chegou uma bela voz afinada cantando um antigo samba triste de Noel Rosa, o Último Desejo. Era do seu canário, que, melancolicamente, oferecia a ele o mais belo espetáculo musical que já ouvira. Após alguns minutos de contemplação, abriu a porta da gaiola e deixou que o pássaro decidisse o momento certo de ganhar sua liberdade.

As surpresas estavam só começando. Conversou com um conhecido gato de rua e descobriu que a barulhada que ele fazia vinha de suas dores de estômago, o felino sofria de algo como uma úlcera. Sentiu pena. Ouviu o casal de jabutis do vizinho se acasalando e ficou envergonhado com o baixo calão das palavras que proferiam. Vivendo e aprendendo. Ouviu do seu peixe beta que o aquário era pequeno demais, a comida era ruim e que ele estava com saudades de ouvir Ramones. Pois é, o Nino era um peixe punk.

Essa situação maluca, no entanto, talvez fosse a saída para o seu sono acumulado. Agendou uma reunião com seus piores inimigos para o meio da tarde, na mesa da sala. Não que ele tivesse insônia, não que trabalhasse tanto assim ou tivesse preocupações tão diferentes das da maioria das pessoas. Era o zumbido irritante dos pernilongos em volta dos seus ouvidos que o impedia de repousar o sono dos justos. Já havia tentando inseticidas em spray e dispositivos ligados à energia elétrica, mas nada dava fim aos magrelos insetos voadores sugadores de sangue que pareciam possuir pequenos motores propagadores de zumbido em suas frágeis estruturas corporais.

A conversa foi tensa, eles se agrediram verbalmente em alguns momentos. Ele tentou exterminar os inimigos à base de tapas por duas ou três vezes, mas se conteve. Precisava aproveitar a oportunidade. E o combinado ficou assim: os pernilongos se esconderiam durante o dia atrás do guarda-roupa e não seriam incomodados. À noite, voariam no mais absoluto silêncio, sem nunca passar próximo aos seus ouvidos. Em troca, ele deixaria sempre parte de um pé para fora da coberta, sem meia. 

Coçava, às vezes doía e ele acordava cheio de pontinhos vermelhos no pé. Mas passou a dormir por horas seguidas e se tornou muito mais disposto, sua vida virou outra. Nunca fora muito bom de negociação mesmo, saiu até no lucro.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Moçada do Norte


Por obra do destino, eu nasci no Vale do Rio Doce (na verdade, descobri que essa é a mesorregião agora, pesquisando na internet), em Minas Gerais. Depois, foram anos de mudanças e residências no Campo das Vertentes, na região metropolitana do Rio de Janeiro, região metropolitana de Belo Horizonte (esse eu também não sabia, mas suspeitava), Zona da Mata mineira, litoral Norte do Espírito Santo e Norte de Minas. Em cada canto desses, um povo com sotaque diferente.

Ainda estou me acostumando com o sotaque dos montes-clarenses, que é uma mistura de mineiro com baiano e tem suas peculiaridades. E um episódio recente me chamou a atenção sobre esse assunto. Eu passava perto de uma quadra, onde uns garotos praticavam futsal e outros esperavam na arquibancada sua vez de jogar. A pelada estava boa, parei por alguns instantes para acompanhar a movimentação da partida.

Entre ataques e defesas, divididas e gols, um lance duvidoso. Um rapaz dominou a bola próximo à linha de lado e um adversário reclamou a marcação de um lateral a favor do time dele. O jogador com a bola contestou. O outro foi incisivo:

- A bola saiu, moço!

- Não saiu, moço. Tava em cima da linha.

- Moço, saiu sim. Eu vi.

- Não saiu não, moço. Sério mesmo.

- Moço, claro que saiu, eu tava em frente à bola.

A discussão foi se acalorando. Os outros jogadores intervieram. O pessoal de fora também. Formou-se um aglomerado conflituoso. Os ânimos se exaltaram.

- Saiu sim, moooço.

- Moço, a bola não saiu. Em cima da linha não é fora.

- Eu sei, moço. Mas saiu toda. É lateral sim.

- Moço, não foi. A bola é nossa, segue o jogo.

- Não, moooço. Pra que eu iria inventar isso? É nossa aqui, moço.

- É dos caras, moço.

- Moço, é nossa. Não passou a linha.

- É deles, moooço.

Nisso eu desisti de esperar o veredito coletivo quanto à marcação ou não do lateral e segui meu caminho. De longe, ainda ouvia “moço”, “moço”, “moooço”, “moço”... 

Acho que se não chamaram o Arnaldo pra ele decidir sobre o lance, a moçada deve estar lá argumentando até agora. A essa altura, é bem possível que já tenham ter batido o recorde mundial de palavra repetida mais vezes numa mesma discussão.

domingo, 21 de julho de 2013

Selvagem


Demorou a acontecer, mas a espera tinha valido a pena. O casal já estava junto há um tempo e, aos poucos, eles foram naturalmente subindo degraus na escala da intimidade. Faltava chegarem ao último – ela preferiu esperar a hora certa, para que cada detalhe fosse perfeito, e ele entendeu.

Assim, sem pressa, com todo o tempo e espaço do mundo, as coisas aconteceram. À meia luz, à trilha sonora de uma balada romântica leve. Tudo conforme o planejado, bem como eles sonharam. Agora os corpos, ainda quentes e ofegantes, se abraçavam, enquanto ele vagarosamente oferecia um cafuné ao cabelo dela. A sensação era a de que poderiam ficar ali para sempre, o universo estava em segundo plano. Até que aquele reconfortante silêncio foi quebrado.

- Eu preciso te contar uma coisa. Sei lá, prefiro que você saiba por mim.

O sorriso simples dela se fechou e a boca articulou uma interrogação. Os olhinhos, então docemente apertados, se assustaram. Arregalaram-se. Pareciam prever algo não muito bom.

- Ahm?

- É que... eu viajei com meus amigos no fim de semana.

Isso ela sabia. Mas jamais imaginava que pudesse ter acontecido algo que interferiria na relação do casal e que merecesse a seriedade que o tom de voz dele sugeria. A voz dela estremeceu.

- E...?

- A gente bebeu bastante.

- Fala! Tô ficando agoniada! O que que aconteceu?

Ela o chamou pelo nome, algo absolutamente incomum.

- Tinha muita gente, pessoal tava animado. Fizemos um churrasco.

- E...? Pelo amor de Deus, termina.

- Na roça! Um churrasco na roça. E eu tô cheio de marcas de picada de carrapato até hoje, algumas parecem ser bem recentes. Acho melhor você já se preparar para se coçar também.

Ele estava certo. E, naquele dia, ela aprendeu que não existem momentos perfeitos. Mesmo os melhores trazem embutidos pequenos problemas. Alguns bem pequenos mesmo e, não importa o quanto se tente, são quase impossíveis de se localizar.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Acadêmico


Eu gosto de ambientes universitários. Não, não me refiro às atuais baladas de sertanejo, mas de fato aos espaços acadêmicos de trocas de conhecimentos. Também não falo especificamente das salas de aula, até porque sou meio crítico do sistema de educação como ele é, mas isso é papo pra outra hora.  São os ambientes de uma forma geral que me inspiram.

As faculdades são espaços de compartilhamento de saberes, de vivências. São lugares povoados por pessoas de diferentes cantos, várias culturas, muitas experiências e, pelo menos se espera, com vontade de chegar um pouco mais longe na vida. Assim, na fala do professor, na biblioteca, no trabalho em grupo de dez pessoas ou no café com pão-de-queijo, as pessoas oferecem um pouco de si, transmitem a outras parte do que são e talvez terminem de formar suas personalidades.

Isso porque ainda não foi mencionada aqui a melhor parte: conhecer pessoas. Todo mundo conhece grandes amigos e amores entre livros, provas e calouradas.

E é por essas e outras que eu fiquei feliz quando descobri que a universidade pertinho da minha casa tem uma academia aberta à comunidade. Já estava mesmo à procura de uma, para não ficar no sedentarismo total, e essa, além de preço bastante acessível, me permitiria estar outra vez próximo ao universo do saber. Eu andava meio afastado desse mundo desde que concluí a pós-graduação.

Agora lá estou eu, a me exercitar e dividir halteres com jovens universitários, professores e servidores. Sempre dou uma olhada no quadro de avisos para me inteirar do que acontece no dia-a-dia dos acadêmicos. É aquilo: seminários, palestras, torneios esportivos. Tudo nos conformes e eu me sentindo realizado, sou de novo um deles. 

Fora que eu achava que eu me passava perfeitamente por um dos graduandos. A sensação era muito boa, tipo uma juventude estendida.

Até uma manhã em que, saindo da academia, fui interpelado por um sujeito. Ele me abordou na reta, de forma bem natural. Eu de luvinhas nas mãos, regata e rosto suado. Fui questionado:

- Opa! Você é professor de Geografia?

Eu? De Geografia, cara? Não, não sou. Nem de Geografia nem de nada. Talvez um dia possa até ser. Mas não sou. Nem tenho cara de professor, sai fora. O lance é que eu voltei para casa chateado, não estava preparado para isso. Acho que vou procurar outra academia.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Porta-retratos


Por um motivo qualquer, aquela gaveta precisou ser reaberta, depois de sabe-se lá quanto tempo. Dentro, documentos antigos, alguns comprovantes de pagamento já apagados, certificados de garantia de equipamentos eletrônicos que ele já não tinha mais e uma chave que ninguém se lembraria de que fechadura poderia ser. Em meio aos restos de passado esquecido, um álbum de fotos.

Por fora, o álbum não tinha qualquer identificação do que arquivava, apenas a logomarca colorida da loja onde as fotos foram impressas. Por dentro, guardava as últimas lembranças físicas ainda existentes dos momentos deles. Quando ainda existia esse plural. Desde que o relacionamento pereceu de vez, as imagens deles juntos foram condenadas ao ostracismo do fundo da gaveta.

Ele não quis se render à saudade que os registros lhe trouxeram. Tentou fechar logo o álbum, mas foi inevitável se permitir a uma rápida olhadela pela sequência de imagens. Impossível não sorrir involuntariamente ao ver o tamanho do riso dela, foto após foto. A cabeça dela encostada à sua, as mãos dadas. Viagens, eventos de todo tipo, amigos em comum. Em poucos segundos de nostalgia, alguns anos de bons momentos à tona.

Preferiu não tirar as fotografias do plástico. Sabia que os versos de algumas delas guardavam recados à mão e o simples contato visual com a letra dela poderia suscitar antigos sentimentos, já aparentemente sedimentados. Fechou, ao som de um suspiro profundo. Sobriamente, desfez-se do álbum. Definitivamente.

Seria simples assim, se a memória não fosse o mais perfeito, e mais cruel, dos porta-retratos.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Você quer, você pode


A trajetória de vida é a soma dos desafios encarados ao longo dela. E não faltam provações – no trabalho, nos relacionamentos, no processo de aceitação dos limites do próprio corpo. Já há algum tempo dizem que o fator-chave para a superação de obstáculos é a tão aclamada motivação.

Algumas pessoas buscam inspiração em grandes casos de sucesso. Outras se apegam à fé e creem ser ela o caminho incontestável na busca de forças para atingir suas metas. Há quem procure aconselhamento profissional. O fato é que é importante acreditar que é possível ir além, vencer mais uma etapa, subir mais um degrau.

Você, que não consegue passar no vestibular, ainda pode, por exemplo, ser doutor em Harvard. Por que não? Talvez seja só persistir, estudar mais. Você, que não consegue sequer um estágio por ter um currículo vazio, ainda pode se sentar na cadeira de diretor-presidente de uma multinacional. Só o tempo dirá. Você, que não sabe dominar uma bola, pode bater o recorde de Bolas de Ouro do Messi, se não desistir de treinar. Você, que nunca entendeu a diferença entre os quatro porquês, um dia pode ser assessor do Professor Pasquale. O método de aprendizado é que pode estar equivocado.  Você, que não pega ninguém desde que a música do Carnaval era “Foge, foge, Mulher Maravilha”, pode em breve engatar um namoro com aquela sua amiga gata que todo mundo sabe que você é apaixonado. As coisas mudam. Você, que luta contra a balança há meses, pode receber um assobio na praia no próximo verão, se não abandonar as atividades físicas e a alimentação saudável. Você, que apanha até da namorada, pode ser o grande astro do UFC 254. Quem sabe você só ainda não encontrou o treinador certo?

A motivação máxima pode vir do treinador, especialista em descobrir talentos. De um professor experiente. De uma consagrada equipe de especialistas em gestão de pessoas e recolocação profissional; eles podem mudar o rumo de carreiras. Ou até daquele amigo gente boa que curte todas suas postagens na rede social quando percebe que ninguém vai fazer isso. Talvez toda empresa devesse ter alguém com esta exclusiva função: motivar. Levantar o astral, fazer crer que é possível. Ou devesse contratar, por uns dias que seja, uma velhinha que malha na mesma academia que eu, que, um dia desses, quando viu uma moça vindo sorridente em sua direção para cumprimentá-la, apertou as sobrancelhas, abriu a boca e soltou, em alto e bom som, sem absolutamente alguma discrição, para quem quisesse ouvir:

- Nossa, menina, e essa barriga aí, vai perder ou não?

Eu duvido que a tal jovem não tenha ao menos dobrado a quantidade de abdominais desde aquela manhã.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Sem moderação


Recentemente adicionei mais uma experiência inédita ao livro da minha vida: presenciar um assalto, de perto. Bem perto, aliás. Após escolher cuidadosamente das prateleiras do supermercado potes de palmito e azeitona para degustar em casa nas quartas-feiras de futebol, eu aguardava pacientemente minha vez de pagar as compras. À minha frente, duas mulheres passavam seus produtos no caixa, eu seria o próximo. Eis que entram dois rapazes aos berros anunciando um assalto e na mão de um deles o que meu pouco conhecimento policial identificou como sendo um revólver 38. Pelos tamanhos e portes dos caras, eram menores.

A situação é meio inquietante, não tem como não ser. O sujeitinho com a arma, um pequeno jovem de boné, gritava que daria “tiros na cara de todo mundo”. Eu sabia que era um blefe, estava explícito, mas não custava nada eu ficar quieto. Ele abriu a gaveta do caixa e encheu a mão, embora depois eu ficasse sabendo que a soma beirava os R$ 30 – eram só notas pequenas. Depois, o assaltante inexperiente rumou para o setor de bebidas, onde se apossou de duas garrafas de Big Apple, enquanto o comparsa, este de capacete na cabeça, tomava conta do caixa e dos clientes. Uma das mulheres que pagava a conta quando eles chegaram respirava ofegantemente – pensei até que chorava – e o ladrão com capacete a tranquilizava, indicando que não haveria maiores danos aos clientes.

Quando as coisas se acalmavam, apareceu um terceiro meliante, também com traços jovens, que deveria estar esperando à porta. Entrou e ordenou à mulher que se desesperava que o entregasse o celular. Eu, a um metro dela, previ que o meu seguiria o mesmo caminho e involuntariamente pus a mão no bolso para entregar o aparelho assim que ele gentilmente me solicitasse. Mas ele olhou para mim e não disse nada; eu tirei a mão do bolso e olhei para o lado, com total cara de desentendido. Não pediu, não seria eu que ofereceria.

Só que ele se virou para a outra mulher e gritou pela aliança dela, que atendeu prontamente. Fiquei com dó, poderia gerar um problema conjugal desnecessário. Aí eu tive certeza de que eu seria o próximo saqueado. Eu, com óculos escuros na cabeça, cordão e pulseira de prata, celular e carteira nos bolsos. O assaltante me fitou e aí que eu me virei mesmo para o fundo do supermercado com olhar vazio, como se ainda não tivesse percebido o que se passava. O meliante esboçou um passo em minha direção, mas talvez tenha me achado tão sonso que resolveu me deixar pra lá. Resultado: todos os pertences intactos comigo.

O mais nervosinho, dono do revólver, ainda pegou dois uísques, eles saíram correndo e entraram em um carro que os aguardava à porta. Sumiram no mundo. Um absurdo. Como eu disse, eram menores. Com garrafas de bebida alcóolica e um carro. É revoltante. A não ser, claro, que um deles seja o motorista da rodada e esperem o último da turma fazer 18 anos para abrirem as garrafas.

domingo, 3 de março de 2013

Dia de Wayne


Era noite de terça-feira e o grupo de amigos jogava conversa fora, tomava cerveja e comia algum prato típico na casa de um deles. O jantar estava bom e a cerveja em vias de congelar. Os mais cansados já começavam a voltar aos seus lares. Até que uma ligação mudou o rumo da noite. E poderia ter mudado, pra sempre, a vida de alguns deles.

Uma das moças, que dividia apartamento com uma amiga, já tinha deixado a reunião. A outra ficou, se permitiu mais um ou outro copo. E foi quando o telefone de uma chamou no da outra que o sinal de alerta máximo foi ligado. Ao chegar ao doce lar, sozinha, ela se deparou com a nada agradável surpresa de ver a porta da frente aberta. Escancaradamente aberta.

Em pânico, ligou para a amiga. Não sabia se corria à polícia, se pedia abrigo a um vizinho, se entregava a vida à própria sorte e encarava de peito aberto o desconhecido no interior do apartamento. Do outro lado da linha, a orientação era de que esperasse. Uma comitiva de amigos iria ao seu encontro, enfrentar junto a adversidade iminente.

A tropa era formada pela outra dona da casa e dois amigos, a bordo de um carro emprestado. No caminho, tensão e silêncio. Evitavam se olhar, pareciam prever algo. A moça que tinha sido a primeira a se deparar com o suposto arrombamento do apartamento os esperava no prédio em frente, trêmula. Disse ter visto, há pouco, desafetos rondando a residência. Talvez tivessem sido alucinações.

Em rápida reunião de estratégia, os dois rapazes decidiram por dispensar a ajuda policial. As moças permaneceram no andar térreo, abraçadas como se fosse a única coisa que pudessem fazer, e eles subiram as escadas a passos firmes para iniciar o trabalho de investigação. De fato, a porta estava aberta.

Conversando apenas com gestos e olhares para manterem-se imperceptíveis ao possível inimigo, os dois iniciaram o processo de perícia para avaliar a possibilidade de a entrada ter sido arrombada. A discrição da atuação daria inveja aos investigadores da série CSI. Concluíram: não havia danos, a madeira estava no mais perfeito estado. A lingueta da fechadura da chave tetra, no entanto, estava visível: a chave fora girada – observação digna de fazer inveja a Sherlock Holmes e Doutor Watson.

Assim, seguros, mas sem qualquer equipamento de proteção corporal tal como atua o morcegão Bruce Wayne, os agentes amadores acenderam as luzes e adentraram o apartamento. Enquanto um vistoriava os quartos, sem deixar de conferir qualquer local onde fosse possível um ser humano se esconder, o outro passava um pente fino na cozinha e área de serviço. Anunciaram, orgulhosos, às moradoras: o local estava livre de qualquer perigo. Desde então, as moças os tratam pelo sincero e justo vocativo heróis.

Talvez a história não tenha tido exatamente esse nível de emoção e testosterona. Nem foi difícil concluir que alguém teve a manha de trancar a chave tetra sem esperar a porta ser completamente fechada e foi embora sem perceber a bobagem. Mas a lição que ficou é a de que vidas correm perigo a todo o tempo. E os olhos dos mais corajosos precisam estar atentos para manter a sociedade segura.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O pendurar das chuteiras


Os tempos mudaram e ele sabia muito bem que já não era mais o mesmo. Nem se quisesse ser. Restavam as histórias da fase Don Juan. Perdeu as contas de quantas mulheres teve para si. Amou muito, amou muitas. Não houve missão a que se tenha se proposto que não tivesse concluído com o mais absoluto nível de sucesso.

A verdade é que era um apaixonado pela alma feminina. E, tanto quanto, pelos corpos. Usava com maestria a inteligência e fazia do galanteio uma ciência quase exata. Os resultados eram previsíveis e naturalmente alcançados, com que sem maiores esforços. Desde a adolescência, foi conquistador. Sempre sabia o que falar, a quem dizer, o instante ideal de cada palavra, o preciso tom de voz a ser usado e a que distância do ouvido estar. A receita do bote fatal tornara-se, então, infalível. Por anos.

Até que um dia, em meio a mais um entre tantos processos de conquistas, as coisas saíram dos eixos. Não estava nos planos que fosse ele o fisgado. Não daquela forma. Mas não teve escolhas: foi inevitável ver-se completamente atado a uma sensação boa jamais experimentada. Encerrava-se ali uma das maiores carreiras de sucesso de todos os tempos. Ele entregava, em definitivo, seu coração a quem chamava carinhosamente de Pequena e transformava-se em uma lenda viva.

Agora não confirmava a antiga fama, apenas sorria um riso de canto discretamente saudosista. Os amigos de outras datas contavam orgulhosos seus feitos nas rodas, mas ele desconversava, mudava de assunto. No máximo, defendia que os tempos eram outros e a sociedade, diferente. Mas no happy hour depois das reuniões de trabalho de quinta-feira, era ele quem escrevia, a pedidos, os bilhetes nos guardanapos que os amigos assinavam e os garçons distribuíam às moças pelas mesas do barzinho. E o índice de sucesso continuava inacreditavelmente alto.


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Missão Zona da Mata concluída


Na noite do hoje longínquo 10 de abril de 2010, tomei um ônibus rumo a Teófilo Otoni, onde eu prestaria um concurso no dia seguinte. Os 600 km de estrada me separavam da prova para ingressar no Banco do Nordeste do Brasil, que, na real, eu tinha descoberto que existia dias antes quando achei aquele edital na internet e resolvi tentar a sorte. Entre as opções de cidade de prova, Teófilo Otoni era a mais perto de Juiz de Fora.

Quando desembarquei pela manhã, de cara fui conhecer a praça que eu soube ser habitada por bichos-preguiça. Não sosseguei enquanto não vi os bichinhos. Ainda tirei onda com um pessoal que conheci lá por eu saber que os pelos das preguiças nascem em sentido inverso ao de todos os outros mamíferos – informação que eu tinha recebido dias antes em alguma reportagem ou documentário qualquer. O pessoal era um pequeno grupo de concurseiros, de uns três homens e duas meninas, vindos de vários lugares. Os caras ainda tomaram umas cervejas depois do almoço e antes da prova, creio que só para fazer graça. Nunca soube como eles se saíram.


Ainda na praça, me lembro de ter sentido uma dor de cabeça terrível. Estranhei, já que estava acostumado a viajar longas distâncias de ônibus e nunca fui de sentir esses efeitos colaterais. Procurei por uma farmácia no centro, mas não tinha nenhuma aberta na tarde de domingo. Fui para a prova assim mesmo e me virei como deu. Depois, já em casa, soube que meu irmão teve a mesma dor na mesma hora que eu e matei a charada: tínhamos tomado uma tal vacina para gripe antes de eu viajar e um dos possíveis efeitos era a dor de cabeça.

O resultado demorou uma eternidade para sair. Mas valeu a pena esperar, eu passei. E desde então eu tenho esperado a convocação, com o nível de esperança de ser chamado variando de alto a baixo de tempos em tempos. De uns meses pra cá, tinha voltado a estudar em busca de uma oportunidade de trabalhar outra vez com o que eu me formei e tocar a vida pra frente. Tanto que tive que deixar minhas experiências literárias de lado e o blog ficou meio paradão. Até que no finzinho de dezembro, mais de dois anos e meio depois da prova, um telegrama mudou a minha vida. Na próxima semana, tomo posse no Banco do Nordeste como comunicador social.

Estou indo morar em Montes Claros, onde eu nunca estive, mas tenho a impressão de que vou me dar bem. É como se eu tivesse um tabuleiro de War e na mão uma carta escrita “sua missão é conquistar a Zona da Mata e o Norte de Minas”. A primeira parte, depois de anos de Juiz de Fora e Viçosa, está concluída.

Aos amigos que torceram por mim e estão comemorando comigo, meu muito obrigado. A quem ainda estuda para tentar um cargo público, garanto que se você continuar praticando, você vai conseguir. E então você vai ficar melhor e melhor. E essas nem são palavras minhas, são de um pequeno jovem imediatamente depois de conquistar uma das maiores vitórias da vida.





A gente se vê no Norte.