sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Chamas de Sabor


A rotina de trabalho de Élton no escritório era intensa, mas ele a considerava tranquila. Como contador há alguns anos, estava acostumado a conviver com pilhas de papéis, prazos curtos e documentos dos mais variados. Entendia-se bem com eles. A pequena equipe, embora não cultivasse grande amizade fora da empresa, trabalhava coesa. O salário era o suficiente para ter um carro e uma casa e criar o casal de filhos pequenos. O que tirava o Élton do sério era ter que atender o Ícaro.

Ícaro era o braço direito do dono de uma fábrica de guloseimas da cidade. Ele apresentava-se como gestor financeiro e coordenador do departamento de pessoal da indústria alimentícia Sabor, mas na verdade era um ex-peão que, de tanta lealdade ao patrão, fora promovido a faz-tudo em uma firma que andava mal das pernas. Cheques voltando dos bancos e dificuldade em honrar compromissos com fornecedores não eram coisas raras. E, embora já fosse cliente do escritório há uns dois anos, Ícaro não conseguia acertar o nome do Élton, o que o deixava bastante irritado.

“Ôôô meu amigo Hélio! Como vai essa força?” Era tudo que o Élton não precisava para começar o dia bem. Quando o Ícaro apontava na sala de atendimento, o contador já se levantava para ir ao banheiro, beber água, fingir procurar um documento no arquivo ou fazer qualquer coisa – uma vez até ajudou a faxineira a esfregar o chão – para não ter que atender o cliente chato. “Aí Élder, chega aqui, trouxe um biscoitinho pra você hoje”, e pedia mil coisas e o presenteava com um recheado de morango que o Élton não aguentava nem sentir o cheiro. Jurou pra si um dia comprar a fábrica de guloseimas e colocá-la abaixo. Se possível, com o Ícaro dentro.

Um dia, logo pela manhã, apareceu o tal cliente. Um dos colegas de Élton viajava de férias e o outro estava em casa por conta de uma virose. Não teve jeito, foi necessário que ele o atendesse. Nesta data, especialmente, parecia que Ícaro estava particularmente mais chato. Não levou nenhum dos documentos pedidos pelo escritório na semana anterior para confeccionar um comprovante que precisava remeter à Receita Federal e já chegou avisando que queria o papel na hora. Reclamou da demora, disse que, se as coisas continuassem assim, a conceituada Sabor iria acabar procurando um escritório mais competente. Todo mundo sabia que a empresa dele corria contra a maré para não decretar a falência e que, mesmo se quisessem trocar de contadores, não era o Ícaro quem apitava nada lá.

Com uma paciência inspirada sabe-se lá onde, Élton o recebeu e demonstrou por que, legalmente, os documentos eram precisos. Ícaro não quis saber, acusou-o de má vontade e, de tanto que ele insistiu, o Élton chamou o senhor Fonseca, dono do escritório. O chefe veio, acalmou o cliente e, com seu jeitão boa-praça, resolveu as coisas. Fonseca recomendou outra vez os papéis necessários e marcou com Ícaro de novo no fim da tarde. Depois puxou a orelha do seu funcionário, disse que entendia que o cliente era muito exigente, mas o pediu pra ter mais presteza no atendimento. Élton, furioso, aguentou calado. Brotou em sua alma um forte sentimento de vingança.

Horas depois, reapareceu o Ícaro. Uma pasta abarrotada de papéis em mãos e muita pressa. “Ô Élcio, vê se me ajuda agora porque não tô com tempo pra essas frescurinhas que você fica me pedindo, hein? Quebra o meu galho aí”. Tamanha era a desorganização do material trazido pelo cliente que o Élton só conseguiu deixar o escritório quarenta minutos após o expediente, depois de preparar, cuidadosamente e contra sua vontade, tudo que a fábrica de doces e salgados precisava. Ouviu muitas bobagens do Ícaro (tentando fazê-las entrar por um ouvido e sair por outro) e, para piorar, teve que aturar o Fonseca, político que só, dar razão ao cliente outra vez. Quando saiu do serviço, com o estresse em níveis estratosféricos, sentou-se em um bar próximo e pediu uma cerveja pra relaxar. Mas não conseguiu.

Não parava de pensar no ódio que o infeliz o trazia. Aquela cara de bobo, o jeito de falar repugnante. E, pior, no sermão que ganhou, gratuitamente, do patrão. Quis largar o escritório, mas precisava pagar as contas da família. Quis vingar-se de Ícaro, cogitou encontrá-lo e rasgar vagarosamente todos seus documentos, mas concluiu que teria que refazer todo o trabalho. Impotente, deu mais um gole na cerveja e, ao abaixar o copo, apareceu em seu campo de visão, como um oásis no deserto, a lotérica da rua, com um das portas já baixas. Uma lâmpada acendeu acima de sua cabeça.

Élton deixou o dinheiro da cerveja sobre a mesa e correu até a casa de jogos. Perguntou se ainda dava tempo para uma última fezinha e o atendente, a contragosto, disse que sim. Marcou seis números quaisquer no canhoto e foi embora agarrado ao papelzinho, abraçado à sua esperança de mudar pra sempre de vida. Ainda naquela noite seria o mais novo milionário do país.

Na hora do sorteio, esposa e filhos já dormiam. Quando o sexto número foi anunciado e todos bateram com o canhoto, Élton, com olhos cheios de lágrimas, conteve seus impulsos de gritar e correr e xingar e manteve-se frio, com o pensamento fixo em Ícaro. Dedos das mãos cerrados, como prontos para a batalha. Não conseguiu dormir a madrugada inteira.

Antes do amanhecer, Élton estava de pé. Vestiu seu único terno e calçou os melhores sapatos. Tomou café na padaria e, assim que a lotérica abriu, foi o primeiro cliente a entrar. Buscou seus milhões e não se importou com qualquer norma de segurança. Dirigiu-se então à sede da Sabor à espera do proprietário da empresa que tanto odiava. Apresentou-se ao empresário como um investidor, disposto a adquirir a firma e todo seu patrimônio, mas sem manter qualquer funcionário. A reação inicial do dono foi negar a proposta, mas Élton já sabia que a fábrica tendia a fechar as portas em breve. Ofereceu o dobro do que a empresa valia e ali mesmo bateram o martelo e assinaram a transferência de posse, que o novo dono, com a experiência de contador, levou preparada.

O próximo passo foi ir a um posto de gasolina. O frentista mostrou-se preocupado com a quantidade de galões de gasolina que o Élton pediu, mas vendeu assim mesmo. O rapaz estava bem vestido, não aparentava más intenções e a grana era boa. Aquela manhã a cidade conheceu seu maior incêndio.

Enquanto espalhava a gasolina pelo pátio da fábrica vazia, Élton gargalhava, lembrando-se dos dois anos em que o infeliz Ícaro o irritou e de todos os nomes que lhe chamara. Agora ele não teria mais emprego, muito menos a amada fábrica de pé. Quando riscou o fósforo, sentiu um prazer nunca antes experimentado. O calor das labaredas na face foi, para ele, a mais cruel das vinganças. Quando soube das notícias, da venda da firma, da demissão e do fogo, Ícaro chorou copiosamente. Sentiu um pedaço de si arrancado e deixou a cidade rumo à terra dos pais, no norte do estado.

Mas nem tudo saiu como Élton planejara. Ao lado da fábrica ficava uma reserva de mata atlântica considerada patrimônio ambiental, que as chamas do incêndio, ao se alastrarem, deixaram em cinzas. Foi notícia internacional, vieram bombeiros da capital. As câmeras de segurança das empresas vizinhas à ex-Sabor denunciaram Élton e seus galões. Ele foi preso no mesmo dia por crime contra a natureza.

Na delegacia, pagou fiança alta e foi liberado – dinheiro não era problema. O julgamento durou seis meses. Foi condenado a pagar uma indenização astronômica e a recuperar toda a área, criando um parque ecológico. O que sobrou do prêmio da loteria ficou com os advogados.

Um semestre depois, Élton não era mais réu. Sem um centavo, foi aceito de volta no escritório do Fonseca, era um excelente contador. A mulher o perdoou pelo devaneio. Tudo continua como estava antes e hoje Élton segue feliz sua rotina. Porque, pelo menos, nunca mais viu o Ícaro.

3 comentários:

ThiagoFC disse...

Ah cara, o texto é bacana, mas....

Se eu ganho milhões na loteria, a última coisa em que vou pensar é num sujeito que me dá trabalho e nem acerta meu nome. Eu poderia até querer sumir do emprego pra não ter que aturar o cara, mas não ia aplicar toda a grana num plano de vingança que, no fim das contas, é até mesquinho.

Matheus Espíndola disse...

Já dizia um dos maiores poetas do mundo, o Chaves: "A vingança nunca é plena..."

Anônimo disse...

"Fazer a pessoa perder o controle de si mesma não é o mesmo que ganhar controle sobre ela." (autor desconhecido)

Nossa Ulisses, queria ter um terço da sua criatividade. E vale ressaltar que nomes compostos para os personagens cairiam como uma luva! Hahaha