domingo, 16 de dezembro de 2012

Conto de amor e loucura


Eles se amavam. Viviam um para o outro, eram uma coisa só. Ela era louca por ele.

Passaram bons e maus momentos juntos. Perrengues. Ela sofreu por ele em outras épocas. Até que passou. A situação melhorou.

Então ela pediu a ele uma prova de amor.

E ele deu a ela o mundo.

Ele, Corinthians. Ela, Fiel.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O fim do mundo


Beirava as oito da manhã. O Sol quente castigava as costas desprotegidas. Poderia ser a hora ideal para um meteoro perdido acertar em cheio a Terra e acabar com essa humanidade vazia sem deixar qualquer vestígio. Mas não foi assim. Era início de um sábado e um cara com nome de legume (ou fruta, nunca fui bom de biologia) fazia do microfone um maçarico para incendiar os guerreiros que teimavam em desafiar o próprio corpo rumo ao infinito do prazer carnal do contato dos lábios regado a álcool e dança.

A equipe se concentrava o mais próximo possível de um megacarro, com som invejavelmente potente. O artista, lá no alto, defendia que não iria embora nunca mais. Nem ele, nem ninguém. Ao longe, do campo de visão próximo da fonte inesgotável das bebidas – uma imensidão contínua de barracas open bar – se via bem o tal Tomate, além de gente, gente, gente (gente boa!) e uma chuva contínua de bebidas alcoólicas lançadas dos copos ao alto, que imediatamente se precipitava sobre as cabeças daqueles foliões escolhidos pelos deuses para estar juntos em um possível e iminente fim do mundo.

Diziam por aí que não seria possível vencer toda a maratona da programação com o corpo limpo de substâncias alucinógenas estranhas a ele. É que as violas das primeiras apresentações irradiaram muita energia positiva. Catalisada, essa força se transformou em molas propulsoras nas pernas dos guerreiros. Ela foi convertida em saltos nos ritmos das mais diversas coreografias de axé. Juntos, estavam amigos que vieram de todos os lados. De Minas Gerais e da região. E a galera de São Paulo chegou mais então. Distrito Federal compareceu. E o cerrado foi o sertão da Brasil e de repente se viu transformar na Bahia.

Nesse tempo, o meteoro a caminho (que nem de perto era da paixão, como diria o amigo Luan) cruzava as galáxias e se aproximava da Terra em velocidade recorde, para estourar de vez esse planetinha. Só que tinha muita gente do bem junta. E outra festa inteira pra acontecer no dia seguinte, que se tornaria ainda mais inesquecível para toda aquela recém-formada equipe de sucesso. Por isso, os deuses, de última hora, decidiram por um desvio mínimo na rota do meteoro e ele se chocou contra uma constelação qualquer, fazendo um monte de estrelas virarem farinha.

A festa continuou. A vida continuou. No hotel, na piscina, no Caldas Country Show. Para falar a verdade, se o mundo tivesse acabado naquela manhã quente de sábado, os paladinos de chapéu se dariam por satisfeitos. É sempre bom terminar no auge.





Escrito às 12h17 de um sábado alucinante, ainda sem dormir e sob forte efeito de álcool. Um relato sobre a lembrança viva de uma cena inesquecível de chuva de bebidas, que eu contemplava sozinho enquanto pedia mais um copo de vodca durante o eletrizante show do Tomate no trio elétrico (depois das apresentações de Israel e Rodolfo, Luan Santana, Chitãozinho e Xororó, Fernando e Sorocaba e Gusttavo Lima no palco principal).


17 de novembro de 2012 – Caldas Novas – Goiás

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O palhaço


Eu devia ter uns seis anos. O circo chegou à cidade e foi montado perto da minha casa. Eu fui às sessões todos os dias. Se pudesse, teria ido mais de uma vez por dia. Tudo me encantava: o mágico, os trapezistas, o globo das motos. E, depois de conhecer e me fascinar por um universo completamente novo, decidi: pela primeira vez na vida, respondi, com firmeza, a quem me perguntava o que eu queria ser quando crescesse: queria ser palhaço.

Não poderia existir profissão melhor: viver às gargalhadas, rodeado de bichos diferentes, viajar sempre e ainda assistir ao espetáculo todas as noites. Os adultos riam da ingenuidade da minha convicção, nem imaginavam a seriedade da coisa. Mas eu havia definido, seria palhaço! Quando o circo se foi, ainda mantive a decisão por um tempo. Só que o sonho do picadeiro foi aos poucos sendo deixado de lado, à medida que eu crescia e percebia que a carreira não era tão viável como eu pensava ser.

Depois, vieram as outras ideias pro futuro, mais racionais. A veterinária não daria certo, fatalmente passaria pela biologia e eu me perderia por ali. O mundo da informática me interessava, mas traria de brinde minhas eternas piores inimigas: a física e a matemática. Com a química eu até me dava bem, mas não ao ponto de fazer disso meu ganha-pão.

Gostava mesmo das palavras. E, assim, meio de paraquedas, caí no universo do jornalismo. É, mas as forças do destino – e do mercado – trataram de me afastar de lá, pelo menos por um tempo.

Eu, o cara das letras, então me vi imerso em um mundo de números e cifras. Quando mais novo, pensei em tantas carreiras para mim e acabei por não seguir nenhuma delas. Pensei em todas de novo numa terça-feira dessas de manhã enquanto abotoava a camisa social e calçava os sapatos pra ir trabalhar. Poderiam ser aqueles sapatos de palhaço.

sábado, 29 de setembro de 2012

Carta santa aberta à humanidade


Filhos e filhas,

Que o Pai esteja convosco.

A situação em que me encontro chegou a um ponto em que não posso mais me omitir. Sinto-me obrigado a falar diretamente convosco, filhos e filhas, e o meio que penso ser mais eficiente é me manifestar por escrito, dirigindo-me a todos indiscriminadamente. Escrevo para milhões de interlocutores, faz-se necessário. E confesso estar constrangido. Oprimido, acuado.

De antemão, revelo que preferiria não ter que fazer isso. Afirmo ter total ciência de que nossa cordial relação pode ser afetada, arranhada, mas não tenho escolhas. É isso ou ver as coisas piorarem. A decisão foi dolorosamente bem pensada.

Acontece que as recentes variações tão bruscas de temperatura são efeitos de massas de ar, de densidades diferentes, associadas a mudanças nos níveis de umidade, que resultam na instabilidade do clima. E tem muito mais coisa envolvida nesse esquenta e esfria que nem eu entendo, não sou meteorologista. Eu mesmo vivo gripado.

Acreditem, meus pequenos, eu tenho senso de humor. Vivo às gargalhadas, faço graça de tudo. 

Mas já não dá mais, está insuportável. Tenho sofrido, andado cabisbaixo. Aonde eu vou, ouço enxurradas de piadinhas maldosas sobre mim. É um bullying infinito. Tudo sou eu, tudo eu. Eu faço chover só de sacanagem para avacalhar o fim de semana da galera, eu não sei mexer no controle do ar condicionado, eu devo viver dançando a Dança da Manivela e cantando “aqui tá quente, tá frio, muito quente, tá frio”. Outro dia me chamaram de bipolar. Cadê o respeito? Não tenho nada a ver com isso. Sério, nada! Minha função aqui em cima é outra. E nem existe essa tal máquina de controlar o tempo.

Portanto, filhos, peço-vos de coração para pegarem mais leve comigo. Já tenho idade avançada e não me faz bem ficar triste assim. O verão vem aí e as coisas vão voltar ao normal. Combinado?

Agradeço a atenção. Que o bom Deus vos abençoe.


Pedro

terça-feira, 18 de setembro de 2012

As you are


A vida é preenchida por momentos de glória e decepção. O ser humano precisa aprender a conviver com o sucesso e o fracasso. A linha divisória entre o êxito e a falha é das mais tênues e tende para um dos lados de acordo com o resultado das provas que o universo oferece todo o tempo. Foi mais ou menos o que aconteceu comigo há dez longos anos e creio só agora estar disposto a tocar no assunto abertamente.

Eu havia me mudado de cidade, mais uma vez, há pouco. Vivia a situação desagradável de ser o novato em todas as redes de relacionamento e não saber exatamente como andava minha aceitação. Na nova escola, já tinha vivido algumas situações que não me favoreciam. Até que recebi um convite inesperado: uma festinha na casa de cara gente boa da outra sala, então namorado de uma menina que estudava comigo. O surpreendente é que aquela turma era das mais fechadas e diziam que andavam apenas entre eles. Pareciam ter gostado de mim.

Lá fui eu. Um apartamento bacana, com cobertura, música alta, umas bebidas. Perfeito para uma galerinha do ensino médio!  A madrugada chegando e eu aproveitava para estreitar meus fracos laços de amizade e conhecer o pessoal com quem eu ainda não tinha conversado direito.

Seguindo o cerimonial à risca, chegou a hora da rodinha de violão. Todo mundo sentado no chão, perninhas cruzadas e uns pop rocks cantados em conjunto. Convencionou-se então que cada um tocaria uma música e cederia o violão ao colega ao lado, que mandaria mais uma. E a cada fim de canção do Jota Quest, Pearl Jam ou Legião Urbana, o ritual se repetia, outro assumia o posto de líder da roda e eu me questionava se só eu no mundo não sabia dedilhar as cordas do instrumento. Ele se aproximava de mim e eu, em silêncio, pensava a melhor atitude a ser tomada para não sair muito por baixo.

Até que o violão chegou ao meu lado. A música terminou e ele me foi entregue. Eu, fingindo certa naturalidade, o repassei ao próximo. Só que o tal próximo não aceitou, alegando ser a minha vez de chefiar a turma puxando um hit musical. Não havia mais escolhas: abri o jogo, revelei que não sabia tocar. Eles insistiam, reafirmavam que poderia ser qualquer canção. Eu, cabisbaixo, ratificava: não dava mesmo. Aí eu recebi uma indagação que mais soou como uma pá de cal, a machadada final:

– Pô, cara, mas nem Come as you are?

– Não, galera. Nem Come as you are.

Um instante de silêncio, as pessoas se entreolharam. O amigo do lado tomou o violão e tocou qualquer coisa. Depois ainda apareceram com uma guitarra e uma caixa de som e um deles gastou na introdução de Sweet Child o’ Mine, acho que só pra me humilhar. Eu permaneci desolado e a noite perdeu metade da graça que tinha. E até hoje fico meio mal quando ouço Nirvana. Confiro se ninguém vem com um violão na minha direção.

É, Kurt, onde quer que você esteja, fique sabendo que o seu riff me causou uma situação bastante desfavorável. Eu que tenho uma cabeça boa, dei a volta por cima e não pensei em bobagens, tipo um suicídio. Opa, comentário nada pessoal, viu?



segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Diferente


Ele dizia que ela era diferente. Dizia que sentia isso. Só não sabia apontar exatamente onde estava a diferença, se era em ponto especial ou no todo. É que ela se portava de um belo jeitinho próprio, único. De um jeito dela. Tinha uma postura definitivamente singular. Ela era dona de uma presença discreta, mas marcantemente discreta, impossível de passar despercebida.

Ela conversava coisas diferentes, inteligentes. Tinha uma história interessante e falava de uma forma diferente, que dava mais vontade de ser ouvida, sem a menor pressa. Carregava um humor gostoso e constante. Ela era das companhias mais agradáveis, pra esperar a chuva, pra ver o sol, pra caminhar estrada afora. E, então, como mágica, os programinhas mais simples poderiam se converter em eventos diferentemente especiais.

Ela era uma pessoa linda. E, some-se a isso, uma mulher linda. Como se não bastasse, ainda tinha olhos que brilhavam. Eram como olhos de princesa! Isso, uma bela princesa de um reino imaginário, boa definição.

E ela tinha um beijo diferente.

Ou talvez ela fosse igual às outras. De dias bons e dias ruins. Como as outras. De acertos e erros. Igual a todas. Com qualidades e defeitos. Só com o sorriso muito mais bonito.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

O texto vazio


Era pra ser um texto grande. Os parágrafos deveriam começar com verbos no passado, caminhar a passos lentos até os do presente e terminar com o mais longínquo tempo futuro. Com o recheio de uma gama infinita de adjetivos, que caracterizassem a força positiva de cada momento cuidadosamente descrito. Os parágrafos contariam coisas boas, de se fazer emocionar. Mas não foi assim.

O texto tinha tudo pra ser o mais bonito do mundo. Seria daqueles que dá orgulho a quem escreve e faz quem lê suspirar. Suspirar mais de uma vez e pensar, pensar muito. Daqueles que dá vontade de ler de novo, copiar no papel, de salvar no computador. Que desse vontade de decorar até! Linhas não tão longas, só o suficiente pra dizer absolutamente tudo, com a importância que cada instante merecesse, do primeiro deles ao infinito. Que nada ficasse de fora. É, mas não foi assim.

As palavras, à medida que lidas, apertariam forte o mais gélido dos corações. Sem dúvida, o coração bateria mais rápido. Bateria sim. A sequência de letras, a registrar uma sequência de atos, seria de umedecer as pálpebras mais secas e deixar escapar, no mínimo, uma lágrima dos olhos de quem a lesse. Olhos semiabertos ou recém-fechados. É provável que algumas lágrimas mais. O texto contaria uma história única e, até então, sem fim.

As linhas poderiam se encaixar no desenrolar de algumas vidas.  Mas o texto seria criado de só uma vida para apenas outra, bem específica. De um par de mãos para outro corpo inteiro. E uma alma. De um passado para um futuro.

Só que o texto nunca existiu. Ele não foi escrito. Talvez se tenha esboçado um título ou até uma introdução. O lápis pode ter quebrado a ponta ou a caneta vazado antes do último parágrafo. Nunca existiu, o texto nunca foi escrito. Nem lido. Mas o lugar então reservado a ele na folha de papel permaneceu sempre dele. Vazio.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Dia 5 de julho eu vou acordar corinthiano


Dia 5 de julho de 2012 eu vou acordar corinthiano. Tenho certeza, eu vou acordar corinthiano. Corinthiano como eu acordei em 15 de janeiro de 2000, na manhã seguinte à noite em que o então presidente da Fifa, Joseph Blatter, entregou a taça de campeão mundial nas mãos do eterno capitão Freddy Rincón, que a ergueu para coroar o ápice de uma geração vencedora e firmar o Corinthians no mais alto degrau do futebol internacional.

Dia 5 de julho eu vou acordar corinthiano. Como eu acordei na segunda-feira, 5 de dezembro do último ano, campeão brasileiro depois de uma campanha impecável. Vou acordar corinthiano como eu acordei após os Brasileiros de 2005, 99, 98 e 90. E igualmente corinthiano depois dos campeonatos de 2002 e 93. Corinthiano como eu acordei após as finais das Copas do Brasil de 95, 2002 e 2009 e como as de 2001 e 2008.

Dia 5 de julho eu vou acordar tão corinthiano quanto acordei no dia 3 de dezembro de 2007, algumas horas depois de ver o Gigante tombar contra o Grêmio no Olímpico e ser condenado a ficar apartado das grandes forças do país por uma temporada. Tão corinthiano como quando o modesto colombiano Tolima adiou por mais um ano o sonho da conquista da América. Ou quando o papel de algoz foi encenado pelo Flamengo ou as doídas vezes de River Plate e Palmeiras.

Dia 5 de julho eu vou acordar corinthiano. Como quando vibrei com as embaixadinhas do Edilson, a pintura do Ronaldo na Vila Belmiro, todas as arrancadas do Tévez e os gols de falta do Marcelinho. Posso até não ver visto o jogo, mas afirmo que dia 5 de julho vou acordar tão corinthiano como acordaria em outubro de 77, um dia depois da final do Paulista e do antológico gol do Basílio. Ah, 77! Ou como depois do bicampeonato de 82/83 pela Democracia Corinthiana de Sócrates e Casagrande ou o título do IV Centenário de São Paulo, disputado em 55, com o time de Cláudio e Luizinho. Ou a dolorosa despedida de Rivellino em 74. Corinthiano como acordaria se tivesse sido mais um na invasão do Maracanã em 76.

Dia 5 de julho eu vou acordar corinthiano. Porque o Tite vai estar no comando. Porque sei que, quando precisou, o Paulinho, o Emerson e o Danilo resolveram. Porque o tempo todo sabia que podia confiar no Ralf e no Castán. Porque o Cássio deu conta do recado e tirou o gol do Diego Souza. Porque o Alessandro segurou o Neymar. Porque o Chicão é um líder e o Alex, o Jorge Henrique e o Liédson compõem a alma vencedora do time. Porque o Romarinho tem estrela e ainda vem mais coisa boa desse moleque.

Dia 5 de julho eu vou acordar corinthiano. Porque eu faço parte de uma nação, de 30 milhões de loucos, que conseguiu unir o Brasil contra ela, deixando, mais do que nunca, o país só com duas torcidas. Porque eu torço por um time que dobrou, um a um, todos seus críticos com um futebol compacto e eficiente.

Dia 4 de julho eu vou acordar corinthiano, sem nunca ter precisado ganhar uma Libertadores para isso. Dia 5 de julho, aconteça o que acontecer no dia anterior, eu vou acordar corinthiano como sempre. Talvez só um pouco mais rouco.

domingo, 24 de junho de 2012

Mais sério do que nunca


Era manhã de segunda-feira e Carina havia acabado de chegar ao escritório, sorridente e esbanjando disposição para trabalhar. A advogada acenou para o porteiro, sorriu simpaticamente para a secretária, cumprimentou os colegas, guardou a bolsa preta no armário e ligou o ar-condicionado da sala e o computador.  Como de praxe, ela abriu a caixa de e-mails e inesperadamente encontrou uma mensagem recém-enviada pelo André.

Carina e André namoraram por uns meses e terminaram amigos. Vez por outra ainda se falam e já até saíram juntos outras poucas vezes. Há um tempo chegaram a cogitar retomar o relacionamento, mas temiam que os problemas que ruíram o namoro – a imaturidade dele e a falta de tempo dela – os afastasse em definitivo. O André não era de escrever e só mandava e-mails com piadinhas infantis e textos bobos e de gosto duvidoso. Mas aquele foi diferente, a começar pelo impactante e enigmático título “Mais sério do que nunca”.



Carina,

Pensei muito antes de te escrever. A verdade é que cada vez que a gente se fala, você mexe comigo. Eu nunca te esqueci e acho que esse tempo separados me fez ter certeza de algumas coisas. E é sobre elas que eu quero conversar com você. Pessoalmente. Quando puder, me encontre. A qualquer hora, em qualquer lugar. Preciso te ver.

Eu tenho pensado em tudo que distanciou a gente, Carina. Talvez eu tivesse mesmo alguns comportamentos inadequados. E tô disposto a mudar, a ser um cara melhor. Uma pessoa à altura de uma mulher tão especial como você. Já tomei algumas decisões sobre isso. Quero apresentá-las a você e ouvir suas opiniões. Pode ser cedo, antes do seu trabalho. Pode ser tarde da noite, quando você sair do escritório.

O que eu sei é que eu não quero e não vou te perder. Tive a chance de te ter pra mim e não aproveitei. Mas vou fazer o que estiver ao meu alcance pra ter outra oportunidade de construir uma vida a dois com a mulher mais maravilhosa do mundo. Dessa vez, pra sempre. É ao seu lado que eu sou feliz, que eu me sinto completo. Só te peço que você me ouça. Posso ir à sua casa. Ou a gente marca um almoço no shopping. Um passeiozinho até a cachoeira ou aquela comida japonesa que você adora. A prioridade da minha vida é dividir com você, Carina, esses planos e sentimentos guardados aqui comigo.

Eu espero o seu tempo. Quando puder, me liga, me escreva. Pense em mim que eu apareço por perto! Qualquer dia. A qualquer hora.


Ah, menos na quarta à noite, tá? Porque, sabe como é, tem futebol na TV e eu encontro com a galera pra tomar umas, comer petiscos engordurados e gritar uns palavrões, bom pra desestressar. E o campeonato tá cada vez melhor. Pensando bem, na quinta de manhã também não, devo estar meio de ressaca.


Tô no aguardo. Um beijo.

André

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Conto à tróis 3 - parte 3

O Marcos iniciou, o Matheus desenvolveu. Eu concluo!

Como escrever uma canção de amor?

Capítulo 3 - Refrão



O silêncio da madrugada no aeroporto internacional aumentava a sensação de aventura que acompanhava o espírito do jovem Jairo. Em questão de horas, estaria no Paraguai. No check-in, pediu para levar consigo o violão como bagagem de mão, mas não foi autorizado. Pensou que o tempo de espera até o voo no saguão poderia lhe trazer alguma inspiração que se traduzisse em notas musicais, mas, como disse o nem tão simpático homem da companhia aérea, “regras são regras, amigo”.

Sentado, com o olhar fixo sabe-se lá em quê, Jairo pensava por onde andariam suas boas ideias. Lembrava-se da simplicidade com que escrevera suas primeiras canções, de como fluíram naturalmente e foram bem aceitas pela crítica. Teriam cessado de vez, sido só uma fase boa? Agora ele estava só, a menos de meia hora de entrar em um avião rumo a tentar um encontro consigo mesmo em um palco desconhecido. Esboçou um assovio diferente, que lhe agradou aos ouvidos. Emendou um solo na sequência e, quando já acompanhava o som com batidas das palmas da mão e a marcação do ritmo com o pé direito, foi surpreendido sendo fuzilado pelos olhares de um casal de velhinhos bem agasalhados que tentavam dormir no banco ao lado, no salão de embarque. Pediu desculpas e se levantou – aquele princípio de inspiração musical se perderia no tempo.

O voo foi péssimo. Jairo não pregou os olhos, em parte pela crise existencial que vivia, parte pelos barulhos emitidos por um casal de namorados nas poltronas da fileira detrás da dele, que pareciam agarrar-se num ritmo mais intenso do que a situação recomendava. O bloquinho de papel viajou em suas mãos, mas a caneta, no bolso da calça, não registrou qualquer palavra.

Em Assunción, Jairo deu uma volta pela cidade na companhia apenas dos primeiros raios de sol do dia antes de decidir onde hospedar-se. Entrou em um hotel feio e velho do centro e pediu um quarto. Da janela, viu as lojas da rua sendo abertas e o movimento de vai-e-vem de pessoas aumentar aos poucos. Compravam bugigangas das mais variadas, carregavam sacolas e embrulhos. Muita gente tinha cara de brasileiro. Sem sono, abriu a mala, serviu-se de um copinho de cachaça. Era da boa.

Jairo caminhou por ruas e vielas durante o dia, sem saber exatamente o que procurava. No fim da tarde, entrou em uma loja de instrumentos musicais, que surgiu à frente. Enquanto os olhos dele passeavam por violões e banjos, algo diferente o chamou a atenção: a beleza de uma harpa paraguaia, instrumento típico do país. Pediu informações sobre a harpa, pediu para dedilhar. Poucos toques depois, Jairo esboçou algumas das canções compostas por ele. As pessoas que passavam pela rua gostaram, pararam, quiseram saber que músicas eram aquelas. Deram-no um violão e ele, dentro da loja, apresentou todo o repertório próprio, sob aplausos e apertos de mão. Uma experiência, no mínimo, diferente. Muitos abraços e novos conhecidos. Convites para jantar.

A harpa ficou, ele não tinha dinheiro suficiente para levá-la. Jairo jamais esqueceu aquele som claro e limpo. De volta ao hotel, ele escreveu uma canção de amor e chamou-a “Pura”. Jamais contou a ninguém que a dedicava a um instrumento. Em seu último dia como hóspede, conheceu uma bela moça, camareira. Simpática, dona de grossas coxas e um irresistível sotaque castelhano. Quando ele se foi, deixou, sem pretensões, um poema para ela no quarto.

O voo de volta foi de intensa atividade para Jairo. Outra canção escrita, dedicada ao povo paraguaio. Mais uma, que falava de um antigo e discreto hotel, que já abrigara grandes histórias de amor. Uma terceira contava a alegria de dois recém-casados em lua-de-mel no avião e outra narrava a história de um casal de velhinhos que viajariam para conhecer o neto e rever a filha que fora viver em outro país há anos. Uma sobre amizade, intitulada “Regras são regras, amigo”. A última obra produzida nas nuvens – a que alavancou de vez a carreira de compositor de Jairo – tratava do amor entre um hóspede brasileiro e uma camareira paraguaia, que se conheceram pelos trabalhos do destino e jamais se separaram. Na música, ele levava a bela Sarita ao Brasil, onde eles se casavam, tinham um filho, o Juan, e a moça já esperava outro menino no ventre. O poema que Jairo escrevera horas atrás virou refrão.

A canção foi gravada em várias línguas, fez sucesso. Atualmente está entre as mais tocadas no Paraguai. Outro dia, a camareira a ouviu, na voz de um conhecido cantor local. Gostou da música e lembrou-se daquele hóspede com quem trocou poucas palavras há um tempo e que deixou um bilhete bonitinho. Jairo nunca mais parou de escrever, sobre o amor e todas suas faces. Talvez ele tenha conseguido reinventar o amor.

Conto à tróis 3 - parte 2


Como escrever uma canção de amor?

Capítulo 2 - Apenas uma calça jeans

Uma aventura mundo afora?

Parte 2, por Matheus Espíndola, no sempre parceiro Blog do Cano.

Conto à tróis 3 - parte 1


O Conto à tróis chega à sua terceira edição. Dessa vez, faço o desfecho da obra Como escrever uma canção de amor?.

Jairo, um jovem compositor em busca de inspiração para a música. Para a vida.

Parte 1, por Marcos Oliveira, dessa vez publicado no consagrado Sandália e Meia.

domingo, 29 de abril de 2012

A4


Ela estava a postos há algumas semanas, mas ninguém tinha precisado dela ainda. Ela não desanimava, acreditava que seria útil em breve. Fazia planos para um trabalho bem feito e não decepcionar. A vida no interior da impressora não era fácil, mas aquela folha A4, a última da bandeja, tentava ver as coisas de uma forma positiva.

O problema é que a história sempre se repetia: ela esperava pacientemente a vez de subir, conhecer o toner e ganhar o mundo, grafada de letras ou quem sabe uma bela imagem, mas a gaveta era carregada com mais papel e a folha solitária continuava no fundo.  A impressora era a única da repartição, muito usada, e a gerência havia disseminado a cultura da solidariedade corporativa, que instruía os empregados a não esperar que outro tome pequenas atitudes que poderiam melhorar o trabalho de todos – como encher a impressora de folhas.

No começo, a folha aproveitava para trocar ideias com as novas companheiras de bandeja e fazer amizades. Mas, com o tempo, tornou-se amarga. Via outros papéis acabarem de ser colocados na gaveta e, instantes depois, ganharem o mundo.  Não conseguia mais aceitar a injustiça da situação. Calou-se.

Até que surgiu a oportunidade de ser impressa. A folha ficou radiante, quase não se continha, parecia criança à espera da festa de aniversário. Faltavam apenas quatro papéis. Três. Dois. Ela era a próxima! Minutos de expectativa... e a bandeja foi aberta, carregada com uma resma de 500 A4 e ela continuou no fundo. Os sonhos de receber um jato de tinta com versos de Camões ou a conclusão de um trabalho científico deram lugar ao ódio no coração. Ao sentimento de vingança.

Passaram-se mais semanas até a folha ter outra oportunidade de deixar a gaveta. E da próxima vez deu certo. Mas ela não queria mais. Pôs em prática a vingança arquitetada durante dias e noites. Quando foi puxada, entrou na impressora e empacou, antes de receber a tinta. Travou o equipamento, que ficou parado por toda a tarde. A repartição não pôde imprimir mais nada e a rotina de trabalho foi completamente modificada. Chamaram os técnicos, que só apareceram dois dias depois. Dias de caos. E a impressora nunca mais parou de dar problema. Mesmo dilacerada, aquela folha ria em silêncio. Vingara-se dos inúteis que não tinham dado a ela o valor que merecia.



Dizem que assim surgiram impressões chulas que terminam com “a quatro”.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Atrás de um caminhão


No princípio da noite de sexta-feira, Maurício Júnior preparava-se para a balada, que prometia. O abadá estava separado, sobre a cama. A expectativa era das melhores. Mauricinho havia intensificado os treinos na academia nas últimas semanas e passado a tarde daquele dia exercitando bíceps e ombros. 

O rapaz tirou a barba com um Mach 3 Turbo para não ter erro e perfumou-se com uma fragrância importada. Montou um moicano com gel. Vestiu a bermuda e calçou os tênis novos. O celular tocou, eram os amigos informando que já estavam na porta. Pegou as chaves do carro e uma garrafa de Absolut – o camarote teria bebidas liberadas, mas o caminho até lá seria regado a vodca e energéticos. Partiu confiante para a micareta e, assim, perdeu as contas de com quantas garotas ficou.

Roberto Júnior nem esperava ir à tal festa. Ele não dava a mínima para shows de axé, não era a onda dele. Acontece que justo no dia recebeu de volta uma grana que tinha emprestado para um amigo há um tempo e não contava que veria outra vez tão cedo. Decidiu torrá-la e a balada do trio elétrico era aonde todo mundo iria no dia. Comprou um ingresso de pista mesmo, o mais barato.

Betinho nunca entrou em uma academia. Não estava exatamente no peso ideal. Em casa, tomou banho rápido e foi. Não fez a barba e passou um desodorante desses de supermercado. Encheu a cara de cerveja e foi de ônibus, cantando umas músicas que não conhecia direito e batucando nas paredes com uma galera que nunca havia visto. Partiu confiante para a micareta e, assim, perdeu as contas de com quantas garotas ficou.



Maurício e Roberto não se conhecem. Mas talvez naquela noite tenham interagido um com o outro, indiretamente, muito mais do que imaginam.

terça-feira, 13 de março de 2012

Bola metade


Enfim, o Antônio aceitou sair com o pessoal da empresa. Depois de meses sendo convidado para os happy hours e só agradecendo, ele disse que iria à comemoração do aniversário do Couto, na terça-feira, em um bar novo na cidade. Os colegas brincaram que teriam duas festas em uma – a do aniversariante e a presença, inédita, do Antônio. O fato é que, desde que o casamento dele terminara, tornou-se um cara caseiro. Era adverso a festas e badalações. O Couto era mesmo um cara super gente fina e amigo de todo mundo, mas a ida do Antônio ao bar poderia significar, para quem convivia com ele, um princípio de mudança de atitude.

O Antônio casou-se cedo, com uma amiga da faculdade. O matrimônio não deu certo e, aos trinta anos, estava solteiro de novo, mas sem o menor pique. Passou a dedicar todo o seu tempo livre a um único passatempo: assistir futebol na tevê. Na verdade, embora não admitisse, ele era um camisa nove frustrado. Um jovem goleador, campeão de todos os torneios amadores da região, que não teve chance de seguir como profissional por conta de uma lesão no joelho esquerdo durante um teste. Trocou os gramados pela nostalgia, diziam.

Ele sabia de cor a classificação dos campeonatos. E tinha as tabelas na ponta da língua. Assinou canais por assinatura e acompanhava todas as ligas exibidas. Quando não era horário de jogos, Antônio divertia-se assistindo a antigos clássicos pela internet. Fazia pipoca e tudo. Meia dúzia de long necks para as semifinais da Copa de 54. Pizza no forno para a primeira rodada da Copa da Holanda ao vivo. Um pacote grande de Doritos por um bom Ba-Vi.

Agora lá estava o Antônio no bar, em plena terça, com os colegas. O espaço era novo para todo mundo, recém-inaugurado. Eles juntaram algumas mesas, pediram cervejas e uns petiscos. O pessoal se divertia contando casos engraçados com clientes. Papo vai papo vem, o Antônio mirou uma mesa do outro lado do bar, se surpreendeu e fixou o olhar. Nela, uma mulher bonita, atraente, trajada com um belo vestido e com longos cabelos pretos cacheados sobre os ombros. Pernas cruzadas. Sozinha. Ele a observou por alguns segundos. Na certa, esperava por alguém.

A partir de então, Antônio não conseguiu prestar atenção em mais conversa alguma. Todo o bar foi sumariamente ofuscado pela beleza da morena dos cachos. Ainda sozinha. Apenas uma taça de vinho na mesa. Ele percebeu traços de impaciência no comportamento dela. Olhava fixamente para um ponto, fora do campo de visão dele, bloqueado por uma pilastra. Balançava as pernas num ritmo constante de inquietude. Chegou a morder o lábio inferior mais de uma vez. Definitivamente, ela estava tensa.

Os minutos passavam, o papo na mesa já era a última festa da empresa e o Antônio estava cada vez mais longe do assunto e do cotidiano corporativo. A mulher continuava só, com o corpo inerte e a face voltada a um canto do bar onde impiedosamente o olhar dele não alcançava. Curiosidade fatal. Ele teve a impressão de tê-la visto balbuciar, baixinho, um palavrão. E, estranhamente, assim ela pareceu ainda mais charmosa.

De súbito, a bela se levantou. Como quem tinha a plena certeza de que aquela era a hora de partir. Pagou a conta no caixa e deixou o bar, sem perceber qualquer outro freguês, mas a tempo de passar ao lado da mesa de Antônio e permitir que ele sentisse seu leve perfume. O rapaz não resistiu, foi até a mesa em que ela estava para conferir o que a mulher mirava com tamanho interesse. Surpreso, riu para ele mesmo. Uma televisão exibia uma tela dividida entre um repórter entrevistando um jogador de futebol ainda no campo após uma partida imediatamente terminada e a classificação da Série B do Brasileirão. Ela era só uma torcedora apaixonada. E talvez ele tivesse encontrado sua alma gêmea.

No sábado teria jogo de novo. E ele estaria lá outra vez.

quarta-feira, 7 de março de 2012

O homem e os ratos

Eu sempre gostei de animais. Sempre mesmo, desde que me entendo por gente. Até cogitei cursar Veterinária, mas desisti logo quando me toquei que me dava muito melhor com o Português do que com a Biologia. E sempre gostei de ter animais. Lembro-me com detalhes de como foram meus primeiros encontros com os cachorros que tive: o Rex, o Ringo, a Paquita e o Nick – os dois últimos meus mesmo, não da minha família.

As adversidades sociais modernas me impedem de ter outro cão. Morar em apartamento e não saber onde vou estar num prazo médio são fatores cruciais aqui. Já há alguns anos, então, contorno a situação criando roedores. Viajo nos ratinhos, me faz bem observá-los.

Eu sempre gostei de dormir. Sempre mesmo, desde que me entendo por gente. Era o último a levantar e o campeão de horas seguidas de sono. Até hoje, aos finais de semana, dependendo da madrugada anterior, só vejo a luz do sol na tarde seguinte quando ela quase não existe mais.

Nunca fui de sonhar muito. Pelo menos, não que eu me lembre. Nem de ter sonhos proféticos ou esquisitos. Mas algo tem me chamado a atenção: de um tempo pra cá tenho sonhado, costumeiramente, com, vejam só, roedores!

Talvez seja porque os bichinhos estão na minha vida não é de hoje. O primeiro foi o Rock, quando eu estava na sexta série. Comprei o hamster – desses comuns, amarelinho – numa loja em frente à escola e o levei pra casa numa caixa de papel, sem me preocupar que ele precisaria de um lugar para morar. O jeito foi descolar um caixote. Só que o Rock aprendeu a escalar a madeira e fugir. E eu o procurava pela casa meio desesperado, até que descobri onde era o esconderijo do bicho: embaixo da geladeira. Então, eu guardava o rato outra vez no caixote, ele fugia daí a pouco e eu o pegava embaixo da geladeira. Sucessivamente. Uma hora saí com a minha família e, quando voltamos, ele não estava nem na caixa e nem na cozinha. Fui encontrá-lo no outro dia embaixo do pneu de um carro em frente à minha casa, todo amassado e rodeado por insetos. E eu morava no segundo andar! Triste cena. Pelos meus cálculos, ele foi meu por dois dias. Deixou algumas lembranças, como quando urinou na minha mão e minha mãe ficou gritando que xixi de rato passava doença.

A segunda da lista foi a Maria, uma gerbil (ou esquilo da Mongólia). Eu nem imaginava que existisse essa espécie, até que, já durante a faculdade, entrei em uma loja de pets e a vi. Resultado: comprei-a, em parceria com meus companheiros de república, e ela virou mascote da casa e xodó da turma. Certa vez, conheci um cara que criava gerbils (imagino que seja esse o plural) e ele me ofereceu uma ratinha filhote para fazer companhia à Maria. Aceitei. Mas antes que a roedorazinha conhecesse sua futura amiga, a Maria se foi. Morreu quando uma escada, dessas móveis, caiu sobre ela, na noite de Natal. Acredito que tenha sido a vez que eu mais chorei na vida. Às lágrimas, velei a pobre em uma caixinha de pasta de dente e a enterrei num canteiro na garagem do prédio. Com uma cruz por cima.


Entrei em contato com o rapaz que me daria a outra esquila e contei do falecimento. Ele me ofereceu então duas roedoras. E, assim, entravam na minha vida a Lisa e a Maggie. Com nomes inspirados nas filhas de Homer Simpson, elas tornaram-se as novas mascotes da república e estiveram comigo até que eu me formasse. Depois, me mudei para longe e elas foram herdadas pela minha família. As duas irmãs se foram – dessa vez, de forma natural, sem desgraças. A Lisa morreu primeiro e a Maggie, já velhinha e debilitada, foi ao céu dos esquilos encontrar-se com a irmã.



Vieram alguns anos sem bichos. Mas não me desfiz da estrutura de criação, principalmente do aquário onde os roedores moravam. Até que recebi um presente: Zé e Superman – dois hamsters chineses assim batizados pelo meu priminho, então com cinco anos e dono dos pais dos ratinhos. A verdade é que eu nunca soube quem era quem porque eles eram absolutamente iguais. Um deles já passou dessa para melhor, mas o outro, que convencionei ser o Zé, está esbanjando saúde, cochilando durante o dia e correndo na rodinha à noite.

Talvez pela variedade de espécies e personalidades dos roedores com quem convivi, meu cérebro insista em me fazer sonhar com os bichos. Só que não são sonhos bons. O roteiro é mais ou menos o mesmo: eu perco o ratinho, como acontecia com o Rock, e, tenso, custo a localizá-lo. Aí percebo que não tenho só um roedor, mas muitos! São gaiolas e aquários, de todas as formas e tamanhos, completamente cheios. Nessa hora me sinto muito mal porque não consigo me lembrar desde quando tenho tantos animais e nem há quanto tempo não os alimento. E ainda me aflige a ideia de que há machos e fêmeas juntos e que, em questão de instantes, eles se reproduzirão incessantemente e a casa será tomada por roedores. Então, me aparece, de supetão, o Cazuza, todo despenteado e bebasso, cantando alto no meu ouvido “a tua piscina tá cheia de ratos, tuas ideias não correspondem aos fatos”. Tá, essa parte é mentira. Só escrevi pra eu ver como poderia ser pior.

Vez por outra ainda acontecem coisas inexplicáveis, como quando, em um dos sonhos, eu criava ratos em um aquário, só que com água. E eles viviam de boa, nadando como se tudo estivesse nos padrões da Mãe Natureza. E no último sonho que tive, em uma das gaiolas próxima às dos roedores, eu criava pedaços de torresmo fritos.

O mais interessante dos sonhos são as gaiolas que descubro que tenho. Costumam ser grandes, com vários andares, rampas e túneis. Coisas de outro mundo. Certa vez, uma tinha três andares, estrutura de vidro envolta por madeira nas laterais e um sistema sensacional de iluminação interna. Tá aí, acho que eu deveria ser contratado por designers de gaiolas e me deixarem dormindo, até eu ter um sonho desses e descrever as residências que vejo para que eles as criem no mundo real. Estou sendo desperdiçado.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Os jornais


O firmamento já estava praticamente tomado pela escuridão da noite quando ele chegava em casa. Os sapatos pareciam bigornas atadas aos pés e o andar era arrastado e lento. Os ombros pesavam e sua postura era a de um homem esgotado. O cansaço psicológico refletia no corpo. Paletó em uma das mãos, gravata e camisa afrouxadas. Há alguns meses, o trabalho o consumia e a pressão pela entrega de resultados transformou-se em uma bomba-relógio prestes a minar o resto de sua saúde. Vivia a tensão de perder o cargo de direção na empresa. A maleta nas mãos carregava documentos e relatórios que poderiam mudar sua vida para sempre. Mas quando avistava sua casa, algumas dezenas de metros à frente, sorria por um instante. Sabia que lá alguém o esperava cheio de expectativas.

Ouviu, de dentro, um grito por ele. Mal havia terminado de girar a chave na fechadura para abrir a porta, foi recebido com a maior empolgação do mundo. Ao ponto de desequilibrar-se e ter que se segurar para não cair. Era assim, todos os dias. O retorno ao lar afastava de sua mente as preocupações e qualquer pensamento ruim e ele sentia-se especial. Enquanto deixava a maleta sobre a mesa da sala e o paletó sobre uma cadeira qualquer, recebia longas e afáveis lambidas nas mãos. O cão oferecia a ele um universo de sossego e distração em troca apenas de alguns simples cafunés.

Desde que a família reduzira-se apenas aos dois, quando a dona da casa fora vencida por uma enfermidade, tornaram-se melhores amigos. O cachorro era dela, mas homem e animal viram-se sozinhos no mesmo espaço e decidiram dar uma chance um ao outro. Entenderam-se, após anos de convívio distante. Apaixonaram-se. Agora não se separavam mais.

O humano não precisava mais de despertador. Todos os dias, pontualmente, às 6h, era acordado com uma lambida nos pés. Um afago no bicho e ia ao banho, enquanto o animal corria ao jardim para buscar o jornal. O dono lia as notícias durante o café, enquanto o cão comia seus biscoitos ao pé da mesa. Depois, era hora da caminhada pelo bairro. Sem a necessidade de coleira. Eles mantinham-se próximos porque queriam. Alguns minutos de descanso na praça, um carinho e era tempo de partir ou se atrasariam. Um deles precisava trabalhar.

No início da noite, após o massacrante expediente, outra volta pelo bairro. Para o animal, oportunidade para exercitar-se, praticar o latido no duelo verbal com outros cachorros e, quem sabe, descolar uma namorada. Para o humano, hora de esquecer toda a complexidade da sociedade e do mundo corporativo. Após a caminhada, jantavam juntos e tiravam um cochilo no sofá vendo qualquer coisa na TV.

Novo dia, mesma rotina: despertador de língua, banho, jornal no café, passeio pelo bairro. Trabalho. Volta pra casa, festa, passeio pelo bairro, jantar, sofá.

Numa madrugada como qualquer outra, um deles passou mal, com uma forte dor no peito. O outro soube que o próximo dia não seria de festa. Sentiu que não viria notícia boa. Descobriram uma doença. Em questão de semanas, ele piorou. Mantiveram-se um ao lado do outro todo o tempo. Um esperava à porta do consultório enquanto o outro fazia exames. Estava por perto na hora dos remédios. Diminuíram o ritmo do passo nas caminhadas. Um ensinou o outro a ser mais humano e o outro lhe ensinou a ser menos animal. Tentaram manter a doce e consagrada rotina por quanto tempo fosse possível.

Embora não admitissem, sabiam que a parceria estava prestes a terminar. E acabou numa manhã fresca de sábado. A saúde cedeu, a bomba-relógio explodiu. Em silêncio, ele tocou o corpo inerte do amigo e aguardou ao seu lado o socorro, que chegou tarde demais. Saiu de maca e cheio de tubos e eles nunca mais se viram. Mas os jornais continuam a ser entregues, infalivelmente, todas as manhãs.







Inspirado nessa charge, que desconheço a autoria (além da assinatura meio ilegível). E em todo o sentido que carrega a palavra lealdade.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Bodas de diamante


A primeira vez em que ela o viu foi em uma daquelas ladeiras estreitas, no início de noite de sexta-feira de Carnaval. Foi rápido, o caminho deles se cruzou, mas ele nem a notou, estava com alguns amigos, abraçados, rindo por algum caso bobo. Ele chamou a atenção dela, que diminuiu o ritmo do passo, parou a descida e o acompanhou com os olhos até que ele se perdesse em meio à multidão morro acima. Coisa de instantes. E ela, que tinha ido pela primeira a vez a Diamantina para se divertir com as amigas, sentiu uma sensação diferente e, pode-se dizer, bastante inesperada.

Já há algum tempo ela não saía muito de casa, tinha tido problemas no relacionamento anterior e o trabalho e o a faculdade ultimamente a tomavam todo o tempo. Até que decidiu acompanhar as amigas na viagem até a famosa cidade histórica pro Carnaval – faria bem distrair um pouco. Jamais esperou encontrar alguém especial.

Tudo muito divertido, uma infinidade de novos amigos, brincadeiras e Berolas do Gilmar. Eis que, na madrugada do sábado, quando o Barracão já comandava o som da Bartucada na Praça do Mercado e cantava “Eu quero esse amor”, ela o viu novamente. Era ele, não teve dúvidas. Resolveu chegar mais perto, como quem não quer nada, para ver como ele era de verdade e, quem sabe, ser percebida. Mas a ideia não deu certo. Tinha gente demais entre eles e, minutos depois, quando ela chegou aonde ele estava, o rapaz já tinha sumido. Meio frustrada, achou que estava ficando era louca.

Ela relevou, não podia estar gostando de alguém que nem conhecia. Ainda mais dadas as circunstâncias. Resolveu seguir os conselhos das amigas, desencanar e curtir o Carnaval. E foi o que ela fez. Mas só até a tarde de domingo, quando, no auge do Bar do Titi, avistou outra vez o tal moço. Tomou um susto, dessa vez eles estavam muito perto um do outro. Os óculos escuros não enganavam, era o cara que há dois dias frequentava os pensamentos dela. Talvez fosse a hora certa de rolar alguma coisa. Talvez se ele não estivesse tão embriagado. Mal conseguindo caminhar, ele ficou pouco tempo e partiu, ajudado por um amigo. Ela ficou, sem saber o que sentir.

Na segunda-feira, outra vez os caminhos deles se cruzaram, no samba na Baiúca. E dessa vez ele estava sóbrio! Mas acompanhado. Ela sentiu um calafrio quando o viu com uma garota (na verdade, nem soube se eles se beijaram, preferiu trocar sua rota antes). Já estava intrigada, os encontros – ou desencontros – estavam atrapalhando seu Carnaval.

Já era noite de terça e os tambores da Bat-Caverna ecoavam por toda a terra de JK. Ela foi discretamente avisada pelas amigas que um rapaz a observava, a alguns metros. Quando se virou, não acreditou: era ele. Estava com os amigos, brincavam como crianças entre si e cantavam uma música aparentemente sem sentido. Ele a olhou algumas vezes. Ela também. Ele sorriu. E ela correspondeu. Ele caminhou em direção a ela tentando vencer a multidão. Ela se encheu de expectativas. A música cessou, luzes se apagaram e o grande holofote redondo iluminou o alto do casarão.

Ela olhou a luz e, quando tentou mirar o rapaz, não mais o viu. Ele não veio. Talvez ela tenha entendido errado, o sorriso nem deveria ter sido para ela. O Batman apareceu lá no alto, cantou uma canção de amor e desceu ao palco atado aos cabos da tirolesa, embalado pelo tema do seriado tocado a todo vapor pela banda. Durante a descida do Morcego, ele rapidamente olhou para ela e ela teve a impressão de que ele cantou uma música inteira sem tirar os olhos dela. Tinha mesmo ficado louca.

A moça e o rapaz nunca mais se viram. Quem sabe o ônibus para a cidade dele saiu na terça-feira, logo após eles terem se visto e ele teve, a contragosto, que ir. Quem sabe o destino preferiu separá-los a dar a eles só uma noite juntos. Na Quarta-feira de Cinzas ela voltou pra casa, cansada, exaustada, feliz e com a sensação de que o Carnaval tinha sido inesquecível. E com a sensação de que se apaixonara pelo Batman. Não o vocalista da Bat-Caverna, que desceu e fez um show sensacional. Mas o verdadeiro Wayne, que poderia estar lá e ter tido que deixar a terra dos diamantes às pressas rumo a Gotham City para atender algum chamado urgente disparado via holofote pelo mordomo Alfred. Sei lá, assim ficava mais fácil aceitar as coisas.

domingo, 8 de janeiro de 2012

A Corrida da Chuva


São Pedro estava a postos para a largada. Ele se sentia o máximo com o capacete preto, os óculos escuros e a bandeira na mão. Os competidores estavam ansiosos para o início da corrida. Ao primeiro movimento de braço do santo do tempo, as gotas partiram das nuvens rumo ao solo da Terra na maior velocidade possível. São Pedro sorriu um riso agradável, a prova tinha tudo para ser das melhores de todos os tempos.

Um pingo estava especialmente confiante. A Corrida da Chuva era coisa séria e ele havia se preparado e estudado seus concorrentes e as técnicas dos vencedores das outras edições da competição. Em princípio, uma grande quantidade de gotas dividia a linha de frente da enorme tempestade que se iniciaria.

O pingo acreditava que era o dia dele. Dava rápidas olhadas para os concorrentes e imprimia todo seu micropeso na parte da frente do corpo, que alcançaria o chão primeiro. Ele acreditava que concentração é a palavra-chave para vencer uma disputa de velocidade individual.

O solo se aproximava e o pingo forçou o máximo que conseguiu e, pouco a pouco, se distanciou alguns milímetros das outras gotas. Era o seu dia de vitória como atleta profissional. Deu um grito vazio e molhado, prestes a tocar o chão e ser aclamado o campeão da Corrida da Chuva. Um instante depois, o pingo explodiu num barranco antes de todo mundo e foi transformado em minúsculas gotículas. Em seguida, os outros pingos atingiram a superfície da Terra e, juntos, formaram uma enorme massa de água.

Aí não teve mais graça, porque o barranco cedeu e levou dor e tristeza a muita gente. Mas não era essa a intenção dos pingos, coitados. Agora eles torcem para que a chuva seja um sinal de esperança de que a situação será vencida e de que tempos melhores estão por vir.